quarta-feira, 7 de novembro de 2007

História verídica e dramática de quem fez um aborto voluntário


Sofia fez um aborto sem os três dias de reflexão


Semanas depois de fazer uma IVG, Sofia conta como foi passar pelo processo. "Achei que estava a ser tratada como uma peça de carne"


Os sentimentos de Sofia (nome fictício), poucas semanas depois de ter feito um aborto, dividem-se. Sabia que queria fazê-lo, mas passou por um processo que diz ter sido "de oito a 80": no primeiro hospital onde foi, sentiu-se discriminada e tratada como "mais uma" que vai fazer aborto; naquele onde acabou por fazer a interrupção da gravidez sentiu-se como "um número". "Quando sair, mande chamar a próxima", foi a última frase que ouviu quando saiu da consulta.


Não se arrepende de ter interrompido a gravidez. Andaria na quarta semana de gestação e estava decidida, mesmo depois de o namorado lhe ter perguntado "o que é que tu queres fazer?". Ele está desempregado, ela está a recibos verdes e vive em casa dos pais. Foi a melhor opção. Mas depois do que aconteceu sentiu que queria contar o que é passar por um processo de interrupção da gravidez, desde que é legal fazê-lo por opção da mulher até às dez semanas.


"Pensei sempre na terceira pessoa." E se fosse uma miúda de 16 anos? E se fosse uma pessoa sem estudos nem suporte familiar? Sofia, de 27 anos, sabia que estava grávida mas não percebeu a razão daquelas dores intensas - suspeitou que talvez fosse uma gravidez com complicações. A passar uns dias em casa de uma familiar, não aguentou mais e foi até às urgências do hospital ali mais perto, o São Francisco Xavier, em Lisboa. Aí foi atendida, convidada a deitar-se na maca para ser observada. Não sabe muito bem como surgiu o diálogo, mas, a certa altura, a médica estava a perguntar-lhe: "Vamos deixar-nos de rodeios. Quer este filho?". "Fui parva. Disse-lhe que estava a ponderar uma Interrupção Voluntária da Gravidez [IVG]", conta. Sofia sabia que aquele era um hospital onde 100 por cento dos médicos eram objectores de consciência. "Já é a segunda [mulher para IVG] hoje", foi o que a médica lhe disse de seguida. Não foi observada, as dores ignoradas. "Deixei de ser uma pessoa normal, passei a ser mais uma pessoa que queria fazer um aborto. Senti-me à margem, senti o que, se calhar, sentiram as mulheres antes da lei."


No hospital, ninguém a encaminhou - apenas lhe foi dito para ir ao hospital da sua área de residência. "Fartei-me de chorar, desmistificaram tanto o aborto..." Até pensou em ir até Espanha, como antigamente. Se fosse a tal miúda de 16 anos sem estudos, naquele momento ou "tinha avançado com a gravidez" ou "fazia o aborto num sítio sem condições".

Hospital não comenta


O gabinete de comunicação do São Francisco Xavier não comenta o caso, por não lhe ter sido fornecida a identidade da doente. Como procedimento geral, refere que as utentes admitidas para IVG são encaminhadas com termo de responsabilidade para a Clínica dos Arcos. Independentemente de ser um hospital onde todos os médicos são objectores, "as pessoas são todas tratadas de igual modo, não são discriminadas".


Ainda com dores, nesse mesmo dia, na segunda semana de Outubro, Sofia foi até ao Hospital de Cascais, onde lhe fizeram uma ecografia para saber se era uma gravidez sem complicações e para datá-la. "Fui bem tratada, não me queixo."


Sofia também não se queixa de não lhe terem sido dados os três dias de reflexão a que a lei obriga - ela, como diz, estava decidida. Mas e se não estivesse? Sofia, que é psicóloga, lidou bem com tudo aquilo, sem saber o que iria enfrentar em termos físicos nem conhecer todos os riscos de uma IVG que vinham escritos num consentimento livre e informado que não teve tempo para ler. O médico disse-lhe que assinasse no fim. "Nem metade consegui ler."


No Hospital de Cascais, o médico da consulta de IVG não lhe perguntou porque tinha engravidado, nem a sua história, nem se queria pensar melhor. Com uma sala de espera cheia de mulheres, acabou por lhe dizer que mandasse chamar a próxima senhora e que a enfermeira depois a chamaria para a administração dos fármacos.


"Sabe o que é que eu senti? Senti que o médico não queria saber quem eu era, a minha história, para não se ligar", "senti que havia pressão para despachar e uma grande tensão", como se ele estivesse "a fazer uma coisa que não é permitida" e quisesse "a página virada". "Achei que estava a ser tratada como uma peça de carne." Sofia diz que votou sim no referendo do aborto, mas não "o sim do despacha". Contactado pelo PÚBLICO, o \nHospital de Cascais não respondeu até ao fecho desta edição.

Sofia aguardou na sala de espera com as outras mulheres. Todas as que ali estavam eram licenciadas e foi uma formada em Farmácia que lhe explicou como ia ser o processo medicamentoso, o que ia sentir.


A enfermeira apenas lhe perguntou se tinha comido, requisito para ingerir os comprimidos, que "atacam o estômago". Ninguém a preparou para "as dores horríveis" que aí vinham, que parece que "rasgam o esófago".


Passadas cerca de três semanas, pensa que ainda falta "equilíbrio" ao processo. Mas isso, para já, nem sempre acontece.


No São Francisco Xavier, "as pessoas não são discriminadas", garante o gabinete de comunicação do hospital.


Fonte: Público, 04.11.2007, Catarina Gomes

1 comentário:

Anónimo disse...

Impressionante este testemunho !