domingo, 21 de outubro de 2007
O Código Deontológico da Ordem dos Médicos não deve ser alterado nos seus artigos respeitantes ao aborto e à eutanásia
A homologação do surpreendente Parecer da Procuradoria-Geral da República em relação ao Código Deontológico da Ordem dos Médicos, emitido após solicitação expressa do senhor ministro da Saúde, é um acto tão reprovável como inaceitável. Só numa feroz ditadura se poderia perceber a imposição da ética do Estado a uma classe profissional: lembremo-nos do uso da psiquiatria para o controlo dos dissidentes, utilizada na antiga União Soviética.
Mas o mais grave é confundir ética, a primeira universal e perene nos seus princípios fundamentais e na defesa da dignidade humana, e a segunda, conjuntural, e dependente de políticas habitualmente transitórias. Porque terá sido elaborada a Declaração Universal dos Direitos do Homem?
Antes da revolução de Abril de 1974, tanto o Código Disciplinar como o Código Deontológico eram diplomas legais. Contudo isso só é verdade, neste momento, apenas em relação ao Código Disciplinar.
Foi na ocasião em que presidíamos à Ordem dos Médicos que foram aprovados pela classe os Códigos Deontológicos de 1981 e 1984, que agora o senhor ministro da Saúde tenta, errada e abusivamente, pôr em causa. Isto, sobretudo, em relação a alguns dos seus princípios básicos, já claramente consagrados no Juramento de Hipócrates, há mais de 2500 anos!...
Foi justamente por pensarmos que um Código Ético não devia estar condicionado às conjunturas políticas que ele se manteve, não como Lei, mas como "Orientação Ética" para os médicos. É óbvio que se, cumprindo a lei em vigor, houver médicos que o não respeitem, nunca poderão ser punidos legalmente. Ficarão, então, apenas, sujeitos à sanção moral que a sua consciência lhes ditar. Mas a Ética não mudou!
Será que a escravatura, legal em séculos passados, primeiro na Europa e depois nos Estados Unidos, foi, alguma vez, eticamente correcta? Será que matar o é? E os prisioneiros serem exsanguinados, na guerra Irão-Iraque, quando era necessário dar sangue aos soldados feridos, terá sido lícito? E o que pensar da pena de morte, que Portugal foi o primeiro país a abolir e cuja abolição agora, correctamente, se pretende estender às leis do resto do mundo? Será que alguém pode entender que a vida, no seu início, no seu meio ou no seu fim, não tem valor e dela se poderá dispor? E que dizer da interpretação que pretende transformar a Objecção de Consciência dos Médicos em relação ao aborto numa violação da liberdade individual? Qual é o conceito de "liberdade de consciência"? Deverá o Estado, ou mesmo apenas uma classe profissional, abdicar da defesa dos Valores Universais e tudo deixar ao livre-arbítrio de cada um? Nenhuma sociedade organizada o tem feito, ou poderá fazer.
Esperamos que o Governo não subscreva a posição do seu ministro da Saúde, pois poderá, desde já, contar com a frontal oposição da esmagadora maioria da classe médica, o que ninguém, de bom senso, certamente deseja.
Lutaremos sempre ao lado daqueles para quem o Código Deontológico da Ordem dos Médicos não deve ser alterado nos seus artigos respeitantes ao aborto e à eutanásia e repudiamos frontalmente as ameaças de sanções à Ordem dos Médicos feitas pelo senhor ministro, com base no parecer da PGR, caso o Código Deontológico não seja alterado. Será este um novo conceito, mais progressista e "verdadeiro" (?) de Estado democrático?
"Público", 20.10.2007, António Gentil Martins, Ex-presidente da Ordem dos Médicos e da Associação Médica Mundial e do seu Conselho de Ética
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