A biologia da fidelidade e a evolução do homem
Ontem foi dia de fazer juras de amor eterno. E de ler um curioso texto sobre as vantagens biológicas da fidelidade
Ontem, dia dos namorados, o diário inglês The Guardian publicava um artigo inesperado num jornal ligado à esquerda britânica. Assinado por um professor de genética molecular, Johnjoe McFaden, o texto defendia: "[Foi a] fidelidade que permitiu aos nossos antepassados desenvolver a inteligência social e a coesão social."
De acordo com aquele cientista, os seres humanos "têm a sorte" de pertencer a uma espécie que se comporta de forma predominantemente monogâmica. Porquê? Porque alguns trabalhos de investigação recentes "sugerem que as exigências cognitivas requeridas para formar casais estáveis podem estar entre os factores para o desenvolvimento dos intrumentos de inteligência social que tornaram possíveis as nossas sociedades".
Para chegar a esta conclusão, aquele professor da Universidade de Surrey começa por discutir e rebater as duas teorias que habitualmente são avançadas para o aumento progressivo das capacidades cerebrais e cognitivas dos primatas: a de que estas teriam sido desenvolvidas por esses nossos antepassados viverem em ambientes ecologicamente exigentes ou por viverem em grupos numerosos.
O principal problema dessas duas teorias é que existiram e existem muitas outras espécias que têm de enfrentar ambientes hostis ou vivem em grupos numerosos e não encontramos nelas um desenvolvimento cerebral semelhante.
Já a hipótese de a, chamemos-lhe assim, "fidelidade conjugal" estar associada a cérebros maiores e mais poderosos é confirmada em grupos animais muito diversos, desde algumas aves às raposas.
Em contrapartida, as espécies com comportamento poligâmico (aquelas em que várias fêmeas partilham um macho) ou poliândrico (onde se partilha uma fêmea) possuem, por regra, cérebros menos desenvolvidos.
Existe um conjunto de explicações coerentes com os mecanismos da selecção natural darwirniana que justificam estas diferenças, algumas delas confirmadas por estudos recentes.
Por isso, conclui, "se o amor já não move o mundo, a fidelidade pode ter estado na origem do desenvolvimento das nossas capacidades cognitivas e sociais", logo, a fidelidade terá tornado possível sociedades complexas como são as humanas.
Sem entrar nos sempre intermináveis debates sobre o que é inato e o que é adquirido na natureza humana, alguma reflexão sobre estes mecanismos biológicos poderia ajudar-nos a perceber melhor se os estilos de vida que começam a ser dominantes (um exemplo: apesar de não se conhecerem números exactos para quantos casamentos acabam em divórcios, as mais recentes estatísticas do INE indicam que todos os anos há um divórcio para cada dois casamentos, um pouco acima da média europeia) são os mais adequados.
É evidente que, não devendo o Estado entrar na casa, e muito menos na cama, de qualquer cidadão, e devendo manter-se longe dos estilos de vida que estes escolhem seguir na sua esfera íntima, o debate público destes assuntos não deve ser tabu.
Sobretudo não se deve nem assumir que a biologia nos determina, nem que ela nos é totalmente indiferente. Fazê-lo talvez ajudasse a perceber melhor o que tem mais probabilidade de nos tornar felizes ou infelizes, assim como aqueles que vivem connosco.
Vale tanto mais a pena ir por esse caminho de cabeça aberta e atenta aos diferentes argumentos e pontos de vista quanto essa tal felicidade é, provavelmente, o valor social mais difícil de definir. Tão difícil que a ideia de "procura da felicidade" como um direito humano inalienável está ausente da maioria dos textos constitucionais (a palavra "felicidade" não consta da nossa Constituição, por exemplo, como não consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos).
Entre os textos constitucionais mais importantes só a encontramos no preâmbulo da Declaração de Independência dos Estados Unidos, onde se consideram como direitos inalienáveis o direito à vida, à liberdade e à "procura da felicidade".
Por José Manuel Fernandes, Público, 08-02-15
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