quinta-feira, 24 de julho de 2008

Testemunho impressionante de vida: Carlos Lopes, atleta invisual, psicólogo, um campeão dentro e fora da pista


Na corrida da vida, o campeão Carlos Lopes encontrou múltiplas barreiras, mas nunca se deu por vencido. Aos 18 anos, perdeu o que restava da visão mas não se rendeu à fatalidade. Saltou a barreira e continuou a correr para alcançar os sonhos de criança: ser campeão. Hoje é um dos melhores atletas paralímpicos do mundo, soma medalhas e já perdeu a conta às vezes que fez subir a bandeira portuguesa nos mastros internacionais. Nesta entrevista revela ser um campeão dentro e fora da pista. Um homem sereno e ambicioso que apoia anualmente 250 alunos na escolha das suas opções escolares e profissionais.


O problema de visão do Carlos Lopes é congénito, mas perdeu a visão lentamente. Como foi o momento em que assumiu a cegueira?


Eu já não via bem desde criança. Para mim o momento em que me considero cego foi quando entrei para a faculdade com 18 anos e decidi comprar uma bengala para me ajudar a circular.


Por ser uma doença evolutiva, foi mais fácil a adaptação?

Julgo que acaba por ser mais difícil, porque vamos sempre adiando. Ainda vejo um bocadinho, ainda vejo um bocadinho e vamos adiando a solução dos problemas. Acabamos por passar por situações muito complicadas.


Vivia no Bom Sucesso (Alverca) e estudava em Lisboa, utilizava os transportes públicos…


Cheguei a fazer a ligação do Bom Sucesso para Alverca (dois quilómetros) a pé, só a ver as luzes dos candeeiros. Arrisquei muito, às vezes não media o perigo.


Foi nessa altura que decidiu comprar a bengala?


Foi. Tinha ido para a faculdade. Ainda andei vários meses sem bengala, mas estava a tornar-se muito complicado. Já não via o caminho. Estava a preocupar-me com coisas que não fazem muito sentido e resolvi adquirir a bengala.


Em Alverca já conhecia quase todos os obstáculos. Em Lisboa foi mais complicado?


Muito mais. Em Alverca já sabia onde estavam os postes da iluminação, os caixotes do lixo, os bancos e essas coisas todas. Em Alverca tinha o mapa da cidade na minha memória, em Lisboa não era possível.


Passou por situações muito caricatas?

Ia contra as pessoas, batia contra os postes. E um dia pensei que tinha que mudar.

Alguma vez sentiu reacções negativas das pessoas com quem chocava por não se aperceberem da sua cegueira?

O problema é que as pessoas não percebiam que eu não via. Houve uma história que me fez comprar a bengala. Ia todos os meses levantar a bolsa ao banco. Dentro da agência estava sempre muito escuro e eu não via muito bem as pessoas. Pisava-as sempre. Uma vez uma senhora disse-me: “mas este gajo é maluco ou quê”. Foi o momento decisivo para comprar a bengala.


Sei que gosta de viajar. Como é que um invisual tira prazer das viagens?

É uma pergunta que me fazem muitas vezes, até os meus amigos. Eu digo-lhes: se vocês acham que eu não tenho o direito de viajar, também acham que eu não tenho o direito de viver. O que perco nas minhas viagens é o que perco no meu dia a dia.

Se faz confusão que eu vá viajar, também deve fazer que eu viva.

Cada viagem é um desafio?

Quando faço uma viagem capto muitas sensações. Consigo perfeitamente distinguir Paris de Madrid, Amesterdão, Roma ou Lisboa. Há características diferentes na sonoridade, no movimento, nas pessoas e até na estrutura da cidade.

Em Portugal há ainda demasiadas barreiras arquitectónicas que vos dificultam a vida?

Mais uma vez fez-se a legislação e não se implementou. Sinceramente não sinto tanto as barreiras porque tenho uma cadela guia excelente, só as sinto quando ela está doente e tenho de recorrer à bengala. Esses dias para mim são complicadíssimos.

O que falta para eliminar essas barreiras?

Acima de tudo falta civismo. Porque os carros em cima do passeio são uma barreira criada por quem lá estaciona. Na Suécia conseguimos caminhar um dia inteiro sem estar preocupados com os carros, os postes e os caixotes do lixo.

Gosta de viver em Alverca?

Gosto muito desta zona e gosto das pessoas. A cidade precisa de um jardim onde se possa correr, andar de bicicleta ou de patins. Não há espaço para o lazer e para as pessoas conviverem. Depois há o trânsito que retira qualidade de vida. É preciso retirar o trânsito da cidade e criar estacionamento.

Carlos Lopes foi mandatário da lista de Maria da Luz Rosinha para a Câmara de Vila Franca…

Aceitei dar o meu contributo porque acreditei na equipa e confio que pode fazer um bom trabalho. Sei que as câmaras estão com grandes dificuldades e não é possível fazer tudo.

No futuro admite vir a participar na vida política?

Não me vejo a ir por aí…

Um ano e meio de trabalho para chegar ao ouro

Quando é que descobriu a vocação para o desporto?

Sempre gostei muito de praticar desporto. Quando era miúdo corria, saltava, andava de bicicleta. Gosto muito da natureza, da praia, da montanha e do campo. Nunca pensei que seria atleta de alta competição. Quando me disseram que era possível fiquei muito satisfeito e comecei a treinar.

Na altura imaginou ser um dos melhores do mundo?

Comecei a treinar com uma perspectiva muito ambiciosa e com objectivos bem definidos. Comecei a correr em Novembro de 1988 e treinava aos sábados. Um mês depois treinava duas vezes por semana e, passados dois meses, estava a treinar todos os dias. Encarei as coisas duma forma muito séria.

Porque é que optou pelo atletismo?

É muito agradável desafiarmos as nossas capacidades e sentirmos que estamos a correr com altas velocidades e com objectivos bem definidos. Depois é o convívio que proporciona. O atletismo é uma modalidade que nos envolve com os outros.

Jamais pensaria fazer natação que é uma modalidade muito isolada.

Quando é que surge a orientação para a alta competição?

A primeira competição internacional para atletas portadores de deficiência foi em 1987, no Campeonato da Europa em Moscovo. Eu sabia que em 1989 ia realizar-se outro Europeu na Suiça e comecei a sonhar…

Foi um objectivo alcançado?

Foi muito bom. Nunca tinha ido à Suiça, nunca tinha saído de Portugal, tinha ido só a Espanha. Foi um estímulo muito grande para mim e para toda a selecção nacional e alcançámos a primeira medalha para o atletismo paralímpico. Ganhei os 800 metros

A partir daí começamos a ter competições todos os anos.

E em 1990 conquista três medalhas de ouro no Campeonato do Mundo da Holanda…

Foi muito bom. Ganhei os 200, 400 e 800 metros, um ano e meio depois de ter começado a treinar. Foi um momento muito forte.

Muita coisa mudou, até na mentalidade portuguesa.

O atletismo para portadores de deficiência passou a ser visto de outra forma e percebeu-se que podíamos competir com os melhores. O objectivo inicial era promover o desporto de lazer e de reabilitação, mas houve quem acreditasse que podíamos estar ao mais alto nível.

O campeonato de Barcelona em 2002 foi a consolidação desse projecto?

As pessoas perceberam uma nova realidade e o desporto para deficientes passou a ser encarado noutras perspectivas para além da inclusão e da reabilitação. Começou a perceber-se que os atletas com deficiência também podiam fazer alta competição.

A comunicação social também ajudou a abrir esses horizontes?

Sem dúvida. Houve uma boa divulgação dos nossos êxitos. As pessoas tinham uma visão muito redutora do desporto paralímpico e alargaram-na. Inicialmente, passou a ideia de que ganhávamos porque aquilo era tudo muito fácil e não era preciso trabalhar muito para lá chegar.

Essa ideia mudou?

Mudou muito. As pessoas perceberam que para sermos os melhores temos de trabalhar muito e que somos sujeitos a grandes esforços para alcançar as medalhas. Sou muitas vezes abordado na rua por pessoas anónimas que me felicitam. Hoje há um carinho muito grande e respeito pelo desporto paralímpico. Só tenho pena que a nível institucional, as coisas não funcionem tão bem. É preciso pôr em prática tudo o que está consagrado nos diplomas e nos contratos-programa.



Cadela acompanha atleta e mulher para todo o lado

Gucci é uma cadela negra, dócil, que Carlos Lopes recrutou há quatro anos na escola de preparação de cães guia de Mortágua. Uma guia que o acompanha para todo o lado. Até nas viagens que fez aos Açores e ao Brasil com a esposa João, que é também invisual. “Portou-se muito bem no avião e nos hotéis. No avião aguentou 10 horas sem fazer as necessidades”.

Com o orgulho e satisfação semelhantes aos que um pai utiliza para falar de um filho, Carlos explica que nas viagens de avião Gucci viaja a seus pés, debaixo do banco, e nunca incomodou ninguém. As tripulações e os passageiros ficam encantados com a cadela. “O que é bom, porque deixam de olhar para mim como um cego e de fazer aqueles comentários do coitadinho”, refere com um sorriso.

Com um enorme sentido de orientação e uma memória de “elefante”, Gucci fixa todos os caminhos à primeira e revela-se uma preciosa ajuda para o casal Lopes nas suas viagens. Quando a cadela está doente, Carlos tem de recuperar a bengala e recupera também as dificuldades que Gucci ajudou a vencer.

Campeões paralímpicos adiantam verbas para representar Portugal

Carlos Lopes tem o estatuto de atleta de alta competição desde 1995. Foi dos primeiros atletas paralímpicos a alcançá-lo. Tem direito a dispensa de serviço para estágios e competições e apoio médico e fisioterapêutico isentos de taxas. Há prémios para as medalhas conquistadas e tem uma bolsa mensal.

“Na lei é tudo muito bonito, mas na prática não funciona tão bem”, explica. Os prémios para as medalhas dos paralímpicos são 30 por cento dos atribuídos aos outros atletas, as bolsas são muito inferiores às dos outros atletas e são pagas com grande atraso. “Ainda não recebemos as bolsas de Janeiro de 2005”, refere.

O Instituto do Desporto de Portugal também prevê uma verba para a formação, material desportivo e estágio. Valor inferior ao dos atletas “normais” e transferido para a Federação Portuguesa de Atletismo com muito atraso. “Ainda não recebemos qualquer verba do ano de 2005. Já treinámos dois anos, estivemos no Campeonato da Europa e tivemos de pagar a preparação toda do nosso bolso”, explica.

Carlos Lopes enaltece o apoio do Sporting Clube de Portugal, apesar de frisar que, também em Alvalade não existe uma valorização dos atletas paralímpicos. “Gostaria de ver maior reconhecimento. Mesmo assim, o Sporting é dos clubes que mais apoia”.

O primo e homónimo Carlos Lopes

Carlos Manuel Lopes é primo do outro campeão, Carlos Alberto Lopes, campeão olímpico e recordista europeu da maratona. Ambos fizeram carreira no Sporting Clube de Portugal e isso tem dado alguma confusão. “Já me têm ligado a pensar que estão a falar com ele”, explica o atleta mais jovem. Carlos já foi convidado para algumas galas quando a organização pretendia convidar o primo.

O campeão veterano é primo em primeiro grau do pai de Carlos Lopes, mas o atleta paralímpico garante que não houve qualquer influência do primo. “Faço distâncias muito diferentes. Somos atletas com outras características”. Os dois Carlos Lopes encontram-se com alguma frequência e trocam impressões, mas nada que influencie a carreira do paralímpico.

Carlos Lopes prepara a despedida em Pequim

Carlos Lopes tem 38 anos, aproxima-se o final da carreira paralímpica. Quais são as próximas metas?

Quero participar nos Jogos Paralímpicos de Pequim em 2008 e para isso tenho de fazer mínimos e ficar dependente da cota atribuída a Portugal. Gostava de estar lá porque serão os meus quintos jogos paralímpicos e em 2008 faz 20 anos que comecei a competir. Estou fisicamente muito bem e acredito.

E depois de Pequim?

Em princípio vou deixar de correr, mas não quero fechar as portas. Depende de como me sinta.

Vai continuar ligado ao desporto?

Gostava de ter um papel na área do desporto paralímpico como dirigente, porque é algo de que gosto muito e onde há muito para fazer. Estamos a passar uma fase complicada com os atrasos dos apoios e porque não tem havido uma aposta clara na formação. Gostaria muito de criar um clube destinado a atletas portadores de deficiência. É uma ideia que tenho há muito tempo

O último Campeonato do Mundo na Holanda evidenciou que Portugal está a perder terreno?

Já era previsível a redução do número de medalhas porque há países a apostar seriamente e com equipas muito jovens e nós não fizemos a renovação. Neste momento a nossa selecção é muito semelhante à que tivemos há 10 anos. Mesmo trabalhando bem e obtendo recordes pessoais não tem chegado para as medalhas.

E para além do Desporto, o que vai fazer?

Com o meu trabalho na câmara, de que gosto muito, e todos estes projectos, já me sobra pouco tempo para o resto.


A cegueira não é um bicho de sete cabeças

É num gabinete da Casa da Juventude de Alverca que Carlos Lopes, 38 anos, psicólogo, passa grande parte da manhã. Há uma tela que já lá estava quando chegou, várias fotos a preto e branco e postais com memórias de viagens. Na secretária tem um computador adaptado que utiliza todos os dias, nem que seja apenas para ver o correio electrónico. A partir dali coordena o Gabinete de Orientação Escolar e Profissional integrado no Centro de Recursos e Animação Educativa que trabalha na área da formação de professores e educadores, na promoção de debates e gere uma publicação e uma biblioteca.

São nove horas da manhã e Carlos Lopes chega acompanhado da sua cadela guia Gucci. Veste calça de ganga e uma camisa de bombazina num estilo desportivo. Depois de colocar a conversa em dia com as suas colaboradoras, prepara mais uma jornada de trabalho. As horas que se seguem são de contactos permanentes com alunos, professores e instituições ligadas ao ensino.

Às 15h30, Carlos apanha o autocarro e vai para Lisboa. Começa a treinar às 16h30 e termina cerca das 19h00. O regresso a casa nunca acontece antes das 20h30, sempre com a Gucci por perto.

Ao sábado treina de manhã e depois fica com dia e meio para colocar a leitura em dia e conviver com osamigos. Está a ler dois livros, um deles da colecção Templário de Mickael Jeks, cuja acção decorre no século XIV em Inglaterra. Não tem um livro da sua vida, mas gostou de ler o Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas, O Alquimista de Paulo Coelho e A Casa dos Espíritos de Isabel Alhende. Três das publicações que aconselha no seu sítio na Internet em http://www.carloslopes.no.sapo.pt/.

A Internet é utilizada mais para trabalho que para lazer. Carlos recusa estar muito tempo preso ao computador e não se deixa envolver nos canais de conversação. Vai ao banco através do teclado e integra duas listas de pessoas que trocam informação sobre cães guia e livros através da Internet. “É fantástico poder ler um livro que acabou de sair e é mais económico”

No sítio criado por Carlos Lopes há lugar para o seu currículo profissional e desportivo e uma página dedicada à sua companheira fiel, a cadela Gucci que o guia para todo o lado (ver caixa). Viajar é um dos prazeres de Carlos Lopes. Não pode ir a todos os sítios que gostaria, mas também nas viagens venceu as condicionantes e partiu à descoberta de outros mundos. Ficou encantado com as duas viagens que fez ao Brasil. “Gosto de viajar para sítios diferentes. Adorava ir ao Ártico e à Amazónia e fazer o Transiberiano, mas falta-me a companhia. Se pudesse ir sozinho ia”, diz.

O atleta não gosta de seguir os roteiros turísticos, gosta de perceber como se vive em situações mais complicadas, “por exemplo na Sibéria com 40 graus negativos”. O ano passado foi com os amigos do atletismo à Suécia para ver como se vive num país nórdico com temperaturas negativas e coberto de neve.

Carlos Lopes é um bom garfo. “Gosto muito de comer e pouco de cozinhar”.

Tanto lhe sabe bem uma sardinhada com broa como um prato mais elaborado de bacalhau ou carne. É apreciador de vinho e bebe moderadamente ao fim de semana. “Gostava de perceber mais de vinhos”. As refeições durante a semana são acompanhadas de água ou sumo.

Das memórias de infância guarda a bicicleta e o colégio de freiras que deixou em Moçambique e onde aprendeu a ler e a escrever. Carlos viveu quatro anos em África antes de rumar até ao Bom Sucesso, em Alverca, onde cresceu, estudou, fez amigos e ainda desfrutou do prazer de ver o mundo com os olhos.

A experiência vivida no Centro Infantil Hellen Keller, em Lisboa, marcou para sempre a construção da sua personalidade. A escola especializada em alunos com deficiência visual integrava também alunos normais. “Proporcionou experiências fantásticas”, recorda. “O aceitar das diferenças e o perceber que a cegueira não é um bicho de sete cabeças”, acrescenta. Carlos fez o segundo e terceiro ciclos em Alverca. Entrou com distinção na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Faculdade de Lisboa e, concluído o curso, seis meses depois foi trabalhar para a Câmara Municipal de Vila Franca onde está há 12 anos.


1 comentário:

Joao Martins disse...

Sou aluno da Escola Secundária Francisco de Holanda e peço a vossa Excelência se seria possível fornecer o contacto deste grande atleta para eu poder desenvolver um projecto denominado de DESPORTO ADAPTADO.

Se aceitar o nosso pedido contacte kartforall@hotmail.com

Ansiando por uma resposta,
João Martins