domingo, 16 de setembro de 2007

ESPOSENDE SOLIDÁRIO - CISE

Um novo rumo a cada amanhecer

Com um aspecto um pouco masculino, há muito tempo que Maria, que prefere não dar a conhecer a sua verdadeira identidade, perdeu as vaidades da feminilidade. A vida nunca lhe sorriu e mesmo depois dos 40 anos, a história que vai traçando diariamente é-lhe muito custosa. Aceitou falar connosco a pedido da psicóloga da instituição onde está, pessoa pela qual nutre grande carinho e admiração.
Filha de pai alcoólico, apenas completou o primeiro ano de escolaridade e pouco mais sabe escrever do que o seu próprio nome. Natural de Lisboa, viveu quase toda a vida em vila Nova de Gaia e desde os 13 anos que salta de trabalho em trabalho, consoante o que aparece para fazer. A bebida entrou na sua vida cedo, quando era ainda menina e ajudava o pai no trabalho a serrar a lenha. Com mais seis irmãos e uma família onde a violência doméstica era uma realidade diária, Maria encontrou no vinho e na cerveja um escape para o ambiente onde vivia.
Envergonhada, afirma que com 16 anos já era uma alcoólica. “Até me levantava de noite para beber. Bebia muita cerveja, mas o que mais gostava era de Martini”, diz. Maria é mãe de duas crianças, ambas menores e a viverem em instituições de acolhimento. Enquanto esteve grávida de ambos os filhos nunca parou de beber, apesar de saber que era prejudicial para o feto. Desesperada com a vida, chegou a tentar provocar o aborto do segundo filho. “Estava completamente descontrolada, não tinha noção do que fazia e cheguei a esmurrar a minha própria barriga”, conta. Separada do marido, encontrou na Comunidade de Inserção Social de Esposende (CISE) uma possibilidade viável de mudar o rumo da sua vida. Está inserida na instituição há pouco mais de uma ano e orgulha-se de apenas ter tido uma única recaída que a levou a consumir. Após duas desintoxicações sem resultados no Hospital Magalhães Lemos, no Porto, uma médica falou-lhe da CISE e, depois de ter ficado sem os filhos com a intervenção da Comissão de Protecção de Menores, Maria resolveu tentar uma última vez.
A história de Maria é uma das muitas histórias que preenchem o quotidiano da CISE. Nascida no seio da instituição de solidariedade “Esposende Social”, a Comunidade de Inserção foi inaugurada em Janeiro de 2005 como resultado de um conjunto de acções de cariz socio-económico que culminaram com a criação de uma estrutura gratuita destinada a apoiar os doentes alcoólicos na descoberta da motivação para o tratamento, promovendo assim a ruptura do ciclo geracional de exclusão. “Tínhamos uma grande percentagem de situações de precariedade social, sendo que o drama do alcoolismo era transversal a quase todas elas, fosse da parte do pai ou da mãe”, explica Teresa Vieira, directora-técnica da instituição. “À medida que se mergulha nos problemas, passa-se a ter uma visão mais profunda e o alcoolismo é um fenómeno que tem que ser trabalhado, porque põe tudo o resto em risco”, diz. Esta visão fez com que no âmbito do projecto comunitário de Luta Contra a Pobreza fosse privilegiada a acção nesta área. Em colaboração com o centro de saúde local, que cedia o espaço, e com outras instituições que tratavam o fenómeno do ponto de vista da desintoxicação e do acompanhamento médico, foi crescendo a ideia da construção de uma casa que permitisse acolher quem realmente quisesse sair do ciclo vicioso.
A opção pela ajuda ao universo feminino partiu do facto de serem as mulheres as protagonistas da vida familiar. “São as mulheres que recorrem às estruturas de protecção social, seja para pedirem habitação, dinheiro ou comida, são elas que dão a cara”, afirma Teresa Vieira. Com capacidade para oito mulheres em regime de internato e 12 em centro de dia, a grande prioridade de intervenção foram as mães com crianças menores, não só do concelho de Esposende, mas de toda a região Norte, incluindo alguns casos de Bragança. As doentes vêm encaminhadas de diversas instituições, sejam elas hospitais, centros de saúde, Segurança Social e até pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco. Qualquer utente tem um período de internato que varia entre os três meses a um ano, sendo que já vêm devidamente desintoxicadas e medicadas.
Ana Sofia Cruz é a coordenadora da Comunidade de Inserção desde o seu nascimento. Psicóloga de formação, afirma que não é fácil lidar com a frustração diária de cada uma das utentes. “Estamos constantemente a vê-las num processo de avanços e retrocessos, criámos uma ligação com elas e, por isso, nos custam mais as recaídas e as falhas”, explica. A psicóloga vai mais longe e não tem dúvidas em afirmar que o modelo adoptado em Esposende é muito experimental. “Nós fazemos aqui coisas que não vêm nos livros e, muitas vezes, os contradizem, incluindo a própria relação psicólogo-doente”. “Somos um pouco de tudo: mães, amigas e, às vezes, até filhas, para que elas aprendam a lidar com os próprios filhos”, diz. “Aqui, estas mulheres, pela primeira vez, têm oportunidade de pensar sobre a sua própria existência. Muitas nem sabiam que tinham escolha, viviam vidas de sofrimento, muitas vítimas de violência doméstica, legitimada por elas, já que não conheciam mais nenhuma realidade”, explica a psicóloga.
A dimensão psicológica é muito trabalhada, mas o lado familiar, as competências profissionais e as necessidades de saúde não são descuradas. “Muitas destas mulheres chegam sem qualquer tipo de competência e todos os dias são dias de aprendizagem”, explica Ana Sofia Cruz. Quinzenalmente recebem a visita de profissionais de enfermagem para sessões de “Educação para a Saúde”, onde são discutidas questões como a adopção de métodos contraceptivos ou os malefícios do álcool. O grupo de desenvolvimento de competências parentais é muito frequentado, pois ensina a ser mãe e trabalha temas como o acompanhamento escolar dos filhos, a punição das crianças, etc. A horticultura terapêutica é outra das actividades que a casa proporciona às utentes, em colaboração com o departamento de ambiente da Câmara Municipal de Esposende. As oficinas culturais servem também para preencher o tempo das mulheres, que nos primeiros dois meses de internamento é muito complicado. “Nos primeiros dois meses não têm direito a sair da comunidade para assim conseguirmos prevenir o risco, porque uma simples ida ao café significa um grande risco”, explica a psicóloga. Com o passar do tempo as saídas vão sendo mais constantes e aos poucos é promovido o regresso a casa, com um aumento progressivo da flexibilidade de horários e da autonomia de cada uma. “Somos uma comunidade aberta. Quem quer pode desistir e as portas estão sempre abertas”, afirma Ana Sofia Cruz e acrescenta que as actividades no exterior são muito privilegiadas, uma vez que a grande maioria das utentes é proveniente de meios muito isolados.
Maria teve uma recaída durante todo o tratamento. Estava a temperar uma salada e não resistiu a beber um copo de vinagre. As recaídas são uma realidade diária das utentes e fazem mesmo parte do processo de cura. A motivação de cada uma é que determina o sucesso, pois a abertura ao mundo exterior e o contacto com a realidade que deixaram cá fora é uma inevitabilidade. Sem querer referir números, uma vez que o tempo de existência da comunidade é ainda muito curto para se poderem avaliar resultados, a coordenadora da CISE adianta que das cerca de três dezenas de mulheres que passaram pela casa, 13 tiveram alta, embora haja diversas desistências. Maria tem apenas um sonho: não voltar a beber e ter os filhos de volta. “Espero arranjar os meios para lidar com os meus problemas, sem precisar de beber”. Mulher de estatura média, musculada e queimada pelo sol, Maria sente-se protegida pelos muros da instituição, os desejos de uma vida diferente começaram a nascer agora, depois dos 40 anos, porque até então, acreditava que a vida que tinha era a única possível. Todas as manhãs, quando o sol nasce e começam as tarefas diárias, Maria acredita que cada dia é um passo em frente para um novo rumo.
Associação Esposende Solidário – Retrato
Foi constituída juridicamente em 1994 por 16 instituições públicas e privadas com vocação solidária. Através do primeiro projecto de Luta Contra a Pobreza, a associação concretizou um dos sus objectivos básicos de intervenção, nomeadamente, a recuperação da habitação degradada e o apoio à auto-construção a famílias em situação de grande precaridade social. Enquadradas em programas de solidariedade social, a associação desenvolveu diversas acções no âmbito da formação profissional, acompanhamento a famílias, apoio técnico e material a equipamentos sociais locais, criação de um clube de Emprego e de uma Unidade de Inserção na Vida Activa (UNIVA), dinamização de dois espaços sócio-educativos para jovens, entre outras. Oferece à comunidade serviço de creche, ATL, centro de dia, apoio domiciliário, atendimento social, serviço de enfermagem, refeitório, possuindo ainda uma empresa de inserção.
Notícia daqui.

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