A vida e a morte
2 - A desordem da vida. A hominização.
No estado actual do conhecimento aceita-se que a primeira organização da matéria no sentido da vida começou logo que as condições de temperatura e de radiação o permitiram após a formação da Terra. Admite-se que o nosso planeta na forma actual tenha cerca de 4,6 mil milhões de anos. Os sistemas vivos formaram-se a partir de estruturas inorgânicas, aceitando-se que a formação dos primeiros biopolímeros (proteínas e ácidos nucleicos) tenha ocorrido durante um período de cerca de mil milhões de anos. O aparecimento dos primeiros microrganismos vivos teria ocorrido há aproximadamente 3,5 mil milhões de anos.
Em 1944 Erwing Schrödinger, um físico austríaco considerado como um dos fundadores da mecânica quântica, tentou um esforço de ligação entre a biologia e as leis fundamentais da termodinâmica. Considerou os seres vivos como estruturas altamente organizadas constituídas segundo uma ordem física diferente do universo sem vida. As substâncias que os compõem são retiradas do ambiente e organizadas segundo uma arquitectura funcional de acordo com instruções contidas no próprio organismo vivo. A energia utilizada nesta actividade de organização da matéria também é retirada do ambiente. Este conjunto de processos constitui aquilo a que os biólogos designam por metabolismo que tem duas fases: metabolismo biossintético, anabolismo ou assimilação e o metabolismo bioenergético, catabolismo ou dissimilação.
Designa-se por hominização o processo dinâmico ainda incompletamente conhecido que, por aperfeiçoamentos sucessivos, conduziu ao aparecimento do Homem a partir dos Primatas. A hominização completa implica uma evolução biológica e uma evolução cultural. A primeira teve como resultado um conjunto de capacidades que se traduziram na posição ortostática, nas possibilidades dos movimentos das mãos, na existência de um aparelho fonador e sobretudo no desenvolvimento do sistema nervoso central. A evolução cultural permitiu-lhe a abstracção e a criação de uma linguagem simbólica. A acção conjunta da evolução biológica e da evolução cultural tornou possíveis a reflexão, o autodomínio, a intervenção no meio ambiente, uma linguagem estruturada e uma organização social. As primeiras manifestações consideradas típicas do homem foram os utensílios. Todavia, estes só podem tomar-se como manifestações indubitavelmente humanas quando neles existe um inequívoco aperfeiçoamento funcional e artístico. A manifestação humana mais característica é a arte sob qualquer das suas formas, sobretudo quando essa arte é simbólica, visto que implica a capacidade de abstracção e uma forma complexa de linguagem. A sepultura intencional dos mortos com os seus utensílios revela com a maior clareza manifestações espirituais e religiosas. Por estas razões apenas podemos considerar como pertencentes inequivocamente à espécie humana o Homo sapiens sapiens – o homem na sua forma actual - e o Homo sapiens neanderthalensis. Este último, o homem de Neanderthal, aceita-se como tendo tido o seu apogeu na última época glaciar (há cerca de 75.000 anos) tendo-se extinguido sem continuação na evolução posterior. Tinha uma constituição muito robusta, uma altura média de cerca de 160 cm, as pernas curtas, a nuca saliente e a zona frontal do crânio muito procidente. Fabricava utensílios de sílex e enterrava os mortos com arranjos florais.
3 - A vida humana nascente
Todas considerações sobre o início da vida humana, qualquer que seja a via da abordagem, teológica, antropológica, filosófica ou jurídica, não podem eximir-se a uma reflexão biológica. Existem muitas razões para um debate generalizado sobre o início da vida. O tema da vida humana nascente adquiriu um novo relevo após os debates sobre a utilização das células primordiais na investigação básica ou com objectivos terapêuticos. As questões ligadas à legalização do aborto, transversalmente presentes nas sociedades contemporâneas, estando embora mais relacionadas com estádios posteriores do desenvolvimento embrionário, referem-se ainda às etapas iniciais da vida humana e às condições do seu acolhimento.
Há uma questão prévia que vale a pena explicitar: é necessário que a interpretação dos dados recolhidos pelas ciências experimentais se mantenha fiel a uma lógica científica e as conclusões não a ultrapassem no sentido de se atribuir um significado de valor aos elementos demonstráveis da observação; é necessário, ainda, que os intervenientes das ciências humanas tenham uma clara compreensão dos dados da ciência e os respeitem no sentido de fundamentar solidamente as suas afirmações. Perante a existência de domínios incertos do conhecimento não podem fazer-se afirmações que modifiquem a clareza do diálogo e contribuam para o desqualificar.
O primeiro facto biologicamente identificável na formação de um ser humano é a fusão de duas células altamente especializadas provenientes de cada um dos progenitores contendo metade dos cromossomas de um indivíduo adulto. Estas células são designadas por gâmetas: o óvulo e o espermatozóide. Fenómenos semelhantes estão na origem de todos os mamíferos e de outros seres vivos pertencentes a muitas outras espécies. Quando aquelas duas células se aproximam, envolvidas por um ambiente característico de cada espécie, após uma fase de reconhecimento segue-se a penetração do material genético do espermatozóide no óvulo e a formação imediata de uma barreira na membrana que o envolve que impede a penetração de novos espermatozóides. Neste momento inicia-se uma nova cadeia de actividades sucessivas a partir dos materiais provenientes dos dois gâmetas que vão actuar como se fossem dois sistemas complementares, com actividades coordenadas e interdependentes. O que teve lugar foi a constituição de uma nova entidade que tem designação biológica de zigoto ou embrião unicelular. O zigoto é, na realidade, uma célula semelhante a qualquer outra célula de um ser vivo adulto contendo um número duplo de cromossomas relativamente a cada um dos gâmetas. O zigoto designa-se, por isso mesmo, como uma célula diplóide. O que vai seguir-se é um período de reduplicação sucessiva do número de células com genoma idêntico ao da célula inicial; estas irão distribuir-se radialmente e diferenciar-se no novo organismo pluricelular.
Os estádios iniciais da vida dos mamíferos superiores e da vida humana tem fascinado todos os investigadores nestes domínios, tanto mais que existem actualmente muitas dezenas de milhares de embriões humanos que se encontram conservados artificialmente no frio, excedentários das intervenções de procriação assistida. O seu destino será necessariamente a destruição, visto que para eles não será possível encontrar acolhimento no seu natural meio de desenvolvimento – um útero materno preparado para a maternidade. Nestes termos, muitos propõem que estes embriões sejam atribuídos à investigação. Foi então introduzido o termo de pré-embrião para indicar o período do desenvolvimento humano que vai desde o zigoto até ao décimo quinto dia de evolução. Foram feitas tentativas de integração deste termo no vocabulário diário e foi mesmo aceite por alguns organismos internacionais. A nova entidade - o pré-embrião – pretenderia designar um ser ainda não humano para justificar a manipulação dos embriões excedentários da fertilização “in vitro” e abrir caminho para a licitude da sua utilização para fins investigacionais e da sua destruição intencional. Não existe, no entanto, nenhum critério objectivo que permita diferenciar um embrião humano no período anterior e posterior aos quinze dias após a formação do zigoto. Ele tem todas as condições intrínsecas para se desenvolver se lhe forem facultadas as condições ambientais que lhe são próprias. A este tema se refere o Papa na encíclica Evangelium Vitae quando escreve: “alguns tratam de justificar o aborto sustentando que o fruto da concepção, pelo menos durante um certo número de dias, não se pode considerar ainda uma pessoa humana” (E V, 60).
Este é, na verdade, um ponto de extrema importância, porque está em jogo o sentido integral da vida humana, a sua protecção, a sua dignidade e os seus direitos. A reflexão sobre todos os dados até hoje demonstrados pelas ciências experimentais não pode deixar de conduzir à conclusão de que a fusão dos dois gâmetas inicia o ciclo vital de um novo ser humano. O seu corpo terá um desenvolvimento autónomo, contínuo e progressivo a partir das fases mais primordiais seguindo um programa que está inscrito nos seus genes. A realização desse programa está sujeita às condições que são características de cada ser vivo - dependência estrita das condições do ambiente em que vive, da adequada nutrição, da sujeição aos factores de doença e da exposição às agressões. E está sujeito à morte, muito comum nas fases iniciais em todos os seres vivos. O embrião humano, logo desde a fusão dos gâmetas, não é um ser humano potencial. É um ser humano real que iniciou a sua própria existência.
4 – O sentido da vida, a pessoa humana e a sua dignidade
A dignidade humana refere-se a um atributo universalmente comum a todos os homens que os coloca num grau superior a todos os seres existentes na Terra. Os homens, porque o são, nascem livres e iguais em dignidade e direitos devendo agir uns para com os outros num espírito de fraternidade e de mútuo apoio.
Segundo a visão bíblica, o Homem tem uma dignidade própria que lhe foi atribuída por Deus que o criou e foi o primeiro a amá-lo: “Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn 1, 31). O Homem, sendo uma criação de Deus, foi por Ele explicitamente tomada como uma realidade boa em si mesma. A sua dignidade maior, porém, não lhe advém de ter sido criado por Deus, visto que todos os outros seres têm essa característica. Aquilo que em exclusivo pertence a todos Homens e lhes confere uma característica única é o facto de serem, cada um, imagem do próprio Deus e por isso terem uma dignidade superior a todos os seres criados. O Concílio Vaticano II nos seus múltiplos documentos, confirmou a visão bíblica e fundamentou a dignidade do Homem: a) na sua origem, pela sua natureza semelhante a Deus; b) na redenção, através da salvação por intermédio de Seu Filho; e c) no seu destino que é o encontro com Deus no Juízo Final.
Para Kant o Homem é um “fim em si próprio” visto que é sede da racionalidade que domina a actividade livre, de modo diferente de todos os outros seres irracionais que agem passivamente. A perspectiva moral é inata a todo o homem impondo-se como um dever, condição que o eleva acima de todos os outros seres na Terra. “No lugar daquilo a que se pode atribuir um preço, pode colocar-se qualquer outra coisa que lhe seja equivalente; o Homem, porém, pela sua dignidade não tem preço. É um valor em si mesmo pela sua racionalidade, voluntariedade e autonomia, não admitindo nada que se lhe possa comparar ou que o possa substituir”. Ele é o único sujeito de actos bons e rectos, sendo a moralidade a condição fundamental da sua dignidade. O imperativo categórico não depende de nada que lhe seja exterior, mas unicamente da sua vontade livre que se manifesta na obediência à lei moral que é independente do conhecimento de Deus. A razão prática é a combinação do intelecto e da vontade que constituem as faculdades decisivas para a vida moral. Portanto, a dignidade do Homem, seguindo este conceito, fundamenta-se no facto de o homem ser um fim em si mesmo. A característica que lhe faculta a expressão da liberdade moral designa-se por dignidade (Crítica da Razão Prática).
A dignidade humana é uma ideia difícil de definir, visto que se refere a um conceito evolutivo e abrangente que resulta da tomada de consciência da pertença de todos os homens e mulheres ao género humano. Deste facto resulta a comparticipação na mesma natureza ontológica, com uma origem e um destino comuns. Este sentimento generalizadamente aceite constitui uma conquista da civilização. Nas últimas décadas foi-se alargando a grupos humanos diferenciados e a países com histórias, tradições, culturas e costumes muitos heterogéneos, conferindo a todos os seres humanos um estatuto reconhecido pela maior parte dos países. Os direitos ligados a esse estatuto tendem a ser reconhecidos como universais e inalienáveis. Grande parte dos países aceitaram o princípio da dignidade humana inscrito nas suas leis fundamentais e nas suas práticas quotidianas embora em quase todos existam também graves omissões àquele princípio, nomeadamente no que se refere à presença de comunidades e de famílias marginalizadas em maior ou menor grau, sobretudo entre os emigrantes e os refugiados. Há muitas mulheres, homens, crianças e velhos que são discriminados no acesso aos direitos de cidadania e aos cuidados básicos de saúde e de educação. No entanto, sublinhe-se, na cultura ocidental e na maior parte dos países onde existe acesso fácil à informação livre tem havido lugar a uma aceitação progressiva destes conceitos no que se refere à atenção para com os mais vulneráveis: as crianças, os idosos, os doentes e os deficientes.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, refere-se aos direitos fundamentais que estão associados ao conceito de dignidade humana: a) o direito à vida; b) o direito à não discriminação (sexo, raça, religião, nacionalidade, idade, estado de saúde ou de doença); c) a proibição de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; d) respeito pela vida privada e familiar; e) o direito aos cuidados de saúde.
5 – O ocaso da vida
Cada ser com vida tem um termo do seu ciclo biológico. A partir de um certo momento existe um desequilíbrio entre os factores anabólicos e catabólicos que permitem manter o meio interno dentro das condições e dos limites que permitem a vida. Mesmo que todos os factores externos característicos de cada espécie sejam os mais favoráveis para as funções vitais, a tendência para a desagregação está inscrita no programa vital (no genoma) de cada ser vivo e é inexorável. A manutenção das espécies depende da capacidade de multiplicação, da capacidade de adaptação e da renovação de cada um dos seus membros. A desagregação dos organismos depende da existência de enzimas autolíticos e de agentes exteriores. Os seus constituintes materiais, transformados após a morte, irão integrar a cadeia da vida ou serão devolvidos ao meio envolvente inorgânico. O fim de cada ser vivo é uma condição sem a qual a vida não seria possível, quer sob o ponto de vista ontogenético quer sob o ponto de vista filogenético. A natureza da vida, qualquer que seja o ponto de vista sob o qual se considere, pressupõe um ciclo individual que termina com a morte.
O homem é o único ser vivo que pensa na sua própria morte. Apenas ele tem consciência dos seus limites existenciais e do termo do seu ciclo biológico como ser único e irrepetível. Mas a morte em si própria é um insondável mistério, porque de facto ninguém sabe o que é morrer nem o que consiste a sua própria morte. Exteriormente diz-se: a morte é o termo da vida demonstrável. Estamos familiarizados com a morte dos outros, dos amigos, dos nossos pais; assistimos à morte de outros seres vivos e percebemos que se fecha em cada morte um ciclo individual que se repete indefinidamente. Mas essa participação na morte dos outros, por mais íntimos que nos sejam aqueles para quem a vida acaba, é apenas um aspecto absolutamente exterior à morte, uma imagem, uma ideia, um conhecimento ou um afecto. É um acto da vida.
O período terminal da vida humana pode ser extremamente curto ou prolongar-se por muito tempo como ocorre em certas doenças (neoplasias malignas disseminadas, insuficiência cardíaca crónica terminal, doenças degenerativas do sistema nervoso central, na síndroma de imunodeficiência adquirida). Os cuidados de saúde actuais tendem a prolongar o período das doenças terminais. Os doentes nestas situações constituem um desafio ao exercício adequado da arte de ser enfermeiro e de ser médico, quer o doente se encontre no seu domicílio rodeado do afecto do seu círculo familiar, quer esteja num ambiente asséptico de uma unidade de tratamento intensivo envolvido por equipamentos que permitem em cada momento corrigir os desvios do seu meio interno. O cuidar dos doentes no período terminal das suas vidas exige da parte dos enfermeiros uma ponderação individual das circunstâncias que, envolvendo necessariamente os cuidados de saúde adequados à pessoa doente, terá que considerar de modo especial as manifestações dos seus valores culturais e espirituais e o seu envolvimento afectivo, familiar e social.
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Por Alexandre Laureano Santos, Médico
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