segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Pai e Filho

Bonito texto do jovem escritor José Luis Peixoto:

Sou o teu pai. Quando te seguro ao colo, entro no teu olhar, passo-te os dedos pelas faces e sinto que também eu tenho duas semanas porque uma parte de mim nasceu contigo há duas semanas. Agora, enquanto dormes, escrevo-te e imagino que, num instante longe deste instante, chegará um dia em que tu serás grande e segurarás uma folha escrita com estas palavras. Estas palavras são uma corda que une este momento presente e passado a esse momento futuro e presente. Daqui, desta ponta da corda, se der um pequeno puxão nas palavras, tu irás senti-lo aí. Se eu disser verdades, tens duas semanas, és pequenino, eu e a tua mãe amamos-te, tenho a certeza que irás sentir estas verdades aí. No entanto, hoje, aqui, eu não posso saber a maneira como irás sentir estas verdades, estes pequenos puxões, porque eu não sei tudo aquilo que irá acontecer entre este momento e o momento em que serás grande e segurarás uma folha escrita com estas palavras. Seguro numa ponta da corda, mas não sei o seu comprimento, a sua forma ou a sua resistência. Ainda assim, sei, imagino, que estás aí nessa ponta das palavras e quase que tenho vergonha de falar contigo. É difícil escolher palavras para falar com essa pessoa em que te tornaste. Ainda não conheço esse rosto que lê cada palavra deste meu embaraço. Além disso, tenho medo que estas palavras envelheçam mal ou que eu próprio envelheça mal. Talvez encontres aqui adjectivos que deixem de se usar. Talvez comeces a ler estas palavras e talvez, na tua ideia, eu seja alguma coisa que deixou de se usar. Irás olhar para aquilo em que me tornarei e tentarás entender aquilo que quis dizer-te hoje pelos significados que, nessa idade, tiver dado às palavras. Filho, eu tenho trinta anos e sou o teu pai. Tu tens duas semanas, és pequenino, és querido, eu e a tua mãe amamos-te. Quando percebemos que estás feliz, ficamos felizes. Quando choras, ficamos inquietos e não paramos, fazemos tudo, fazemos tudo até ficares feliz de novo. Filho, eu tenho trinta anos, mas sinto que também tenho duas semanas porque uma parte de mim nasceu contigo há duas semanas. Estas são as palavras que quero dizer-te. Os seus significados são simples e não tenho medo de dizer que são puros porque são puros mesmo. No dia em que leres estas palavras, saberás muitas coisas. Eu também já soube muitas coisas. Ser pai não é apenas saber, ser pai é compreender. Por isso, espero que possas reler estas palavras num dia em que sejas pai também. Eu, que sou o teu pai, tive um pai e tive um avô. Tão bem como eu sei que o meu pai era uma pessoa, quando fores pai, saberás que eu, aquele que hoje te escreve e aquele que há duas semanas começou a viver paralelo a ti, sou uma pessoa. De mim, espera amor e espera uma pessoa. Como as pessoas, às vezes, engano-me, não sei respostas, tenho medo, tenho frio, minto, faço coisas feias, desisto, escondo-me e fujo. Eu compreendo que tu irás enganar-te muitas vezes, não saberás respostas, terás medo, terás frio, mentirás, farás coisas feias, desistirás, esconder-te-ás e, quando todos te procurarem, terás fugido. Eu compreendo-te. Segurei-te ao colo, entrei no teu olhar. Foi há menos de uma hora. Passei-te os dedos pelas faces, tentando imaginar a forma como o teu rosto vai crescer. Estas palavras serão o espelho do teu rosto. O teu rosto ficará parado sobre elas. Gostava que soubesses que, hoje, quis tanto ver esse teu rosto que lê. Se puderes, passa agora os dedos pelas tuas faces. Talvez no dia em que leres estas linhas tenhamos deixado crescer entre nós o pudor de nos tocarmos com afecto simples e puro. Pai e filho. Por isso, passa os dedos pelas faces para sentires aquilo que sentiste hoje, duas semanas de vida, pequenino e amado. Ou então, chama-me para junto de ti. Na outra ponta destas palavras, serei outro. Terá passado tempo que, agora, não posso imaginar. Mas, nesse dia, quando chegar a estas palavras que me preparo para deixar agora, assim que olhar para elas, lembrar-me-ei daquilo que é estar a escrevê-las, ter trinta anos e estar a escrever enquanto tu, com duas semanas, estás a dormir. Será como se eu, hoje, fosse também filho desse eu que irá ler estas palavras. O rosto que tenho hoje estará dentro desse rosto que terei da mesma maneira que o teu rosto de criança estará também naquele de quando leres estas palavras. Filho, eu tenho trinta anos e sou o teu pai. Tu tens duas semanas, és pequenino, és querido, eu e a tua mãe amamos-te. Quando percebemos que estás feliz, ficamos felizes. Quando choras, ficamos inquietos e não paramos, fazemos tudo, fazemos tudo até ficares feliz de novo. Filho, eu tenho trinta anos, mas sinto que também tenho duas semanas porque uma parte de mim nasceu contigo há duas semanas. Estas são as palavras que quero dizer-te. Os seus significados são simples e não tenho medo de dizer que são puros porque são puros mesmo. Chama-me para junto de ti. Mostra-me estas palavras que escrevi hoje e pede-me para te passar os dedos pelas faces com o mesmo carinho e com a mesma ternura com que hoje toquei os teus contornos de menino. Tenho a certeza que não terei esquecido. Por mais que aconteça entre hoje e esse dia, por mais mortes e terramotos, tenho a certeza que não terei esquecido. E obriga-me a jurar que nunca deixaremos crescer entre nós um pudor que impeça de nos abraçarmos, de nos beijarmos, de passarmos os dedos pelas faces um do outro. Pai e filho. Eu sou o teu pai. Tu és o meu filho.

*Publicado originalmente no Jornal de Letras.


P.S.- Pena que o mesmo autor, quando optou por apoiar a despenalização do aborto no último referendo, não tenha pensado no mesmo texto, na perspectiva do filho que escreve ao pai.

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