terça-feira, 26 de outubro de 2010

TESTAMENTOS DE VIDA E DE MORTE

Volta à ordem do dia a discussão sobre o chamado “testamento vital”. Há quem sublinhe a diferença entre a consagração legal deste instituto e a legalização da eutanásia. Mas há também quem receie que desta forma se abram as portas a esta legalização.
Não será justificado esse receio se o testamento vital servir para manifestar a vontade do “testador” no sentido da abstenção de tratamentos inúteis ou desproporcionados (no âmbito da chamada “exacerbação terapêutica”). Mas já não será assim quanto a tratamentos úteis e proporcionados na perspectiva da salvaguarda da vida. Os modelos de testamento vital anexos ao projecto apresentado pelo Bloco de Esquerda são claros a este respeito: aí se contempla a recusa de tratamentos que permitam salvaguardar uma vida sem capacidades de autonomia ou sem “qualidade”. Respeitar uma declaração deste tipo é confirmar aquela ideia, subjacente à legalização da eutanásia, de que a vida pode deixar de ser merecedora de tutela quando perde “qualidade”. Trata-se de veicular uma mensagem cultural de desvalorização da vida limitada pela doença que não deixa de ter graves consequência sociais.
Dir-se-á que há que respeitar o princípio da autonomia, evitar tratamentos forçados, respeitar uma vontade do doente previamente formulada quando este não a pode manifestar actualmente por estar inconsciente (a sua incapacidade não o faz perder direitos – argumenta-se). Mas é diferente o respeito por uma vontade actual e esclarecida (que não suscita dúvidas sobre o seu sentido autêntico) e o respeito por uma vontade hipotética, com base em declarações prestadas anteriormente num contexto muito diferente do actual (de forma necessariamente pouco esclarecida, precisamente por esse contexto ser diferente do actual). Não se trata apenas de considerar a dúvida sobre a informação a que possa ter tido acesso a pessoa quando formulou essa declaração, ou sobre se a situação em que se encontra agora era, para ela, nessa altura, previsível. Nem também a possibilidade de o estado dos conhecimentos médicos se ter alterado desde então. É que subsiste sempre a dúvida (independentemente do tempo decorrido e da possibilidade de revogação da declaração) a respeito de saber se a pessoa não poderia mudar de opinião.
É sabido como é frequente uma atitude de grande apego à vida nos seus últimos momentos e diante da revelação de uma doença, mesmo da parte de quem havia manifestado uma atitude contrária quando se encontrava são. Tem sido evocado o exemplo da médica francesa Silvie Ménard, que rasgou o seu testamento vital depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro, porque passou a querer “lutar” até ao fim. E um caso ocorrido num hospital de Cambridge em Julho deste ano também é significativo: estavam os médicos para desligar um aparelho que mantinha em vida Richard Ruud, um homem paralítico e inconsciente devido a um acidente, baseados numa declaração de vontade que este havia formulado verbalmente alguns anos antes a propósito de um amigo também vítima de um acidente análogo; quando ele, através do abrir e fechar de olhos, manifestou a sua oposição, que veio a ser atendida. Afirmou, então, o pai, que tinha autorizado os médicos a desligar o aparelho: «Estou feliz por lhe ter sido dada a oportunidade de sobreviver. Decidir se um filho deve, ou não, viver é quase impossível»
Está em jogo o mais fundamental dos bens e a mais claramente irreversível de todas as decisões «Há solução para tudo menos para a morte» - diz o povo. Depois da morte, não há nada a fazer. Depois de salva a vida, quem disso beneficia sempre poderá pôr-lhe termo pelos seus próprios meios (o que até será pouco provável). Mais vale, pois, salvar uma vida do que tomar uma decisão irreversível que conduz à morte sem a certeza absoluta de que seria essa a vontade do doente. Esta dúvida há-de subsistir sempre. Rege aqui o princípio in dubio pro vita.
Por isso, não deverá ser vinculativa, nem deverá ser observada, uma declaração antecipada de vontade de recusa de tratamentos úteis e proporcionados na perspectiva da salvaguarda da vida. Só assim o testamento vital não será uma porta aberta à eutanásia.

Pedro Vaz Patto, Juiz de Direito

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