domingo, 18 de maio de 2008
Nasci há quase 23 anos, na Maternidade Alfredo da Costa (Lisboa), e só no dia do meu nascimento é que me detectaram Osteogénese Imperfeita, o que por outras palavras quer dizer falta de cálcio nos ossos. Era uma bebé diferente porque era frágil, pequenina, sem defesas e a esperança média de vida resumia-se a semanas ou, com um pouco de sorte, alguns meses!
Durante semanas lutei incessantemente entre a vida e a morte numa encubadora de hospital.
Após um parto complicado, quando vi pela primeira vez a luz do dia... o meu choro foi um misto de alegria e dor: alegria porque finalmente saía cá para fora e estava pronta a enfrentar o mundo que me rodeava e, ao mesmo tempo, tristeza porque já trazia os membros inferiores fracturados e as dores físicas eram enormes. Ninguém sabia explicar aos meus pais porque é que eu tinha nascido assim... Não era um caso genético nem tão pouco comum naquela altura. Deram o exemplo da célebre história da moeda ao ar: em mil lançamentos ou saí cara ou coroa, mas há um lançamento em que a moeda fica em pé... essa excepção sou eu! Ainda que nunca na minha vida pudesse ficar de pé sozinha, muito menos vir a andar... E ninguém sabia como haveria de cuidar de mim nem ousavam adivinhar quanto tempo estaria cá a “sofrer”, como diziam muitos.
Fui amada desde o princípio de minha gestação e quando nasci fui a desilusão, ainda que inconsciente, ninguém sabia porquê nem como aconteceu, a verdade é que eu estava cá... e nem os meus pais sabiam como lidar comigo! À partida, não passava de uma bébé indefesa e desprotegida, votada ao abandono de médicos e enfermeiros – “Já não há nada a fazer, ela dura pouco” – que nem uma palavra de esperança conseguiam dar àqueles que acreditavam em mim... os meus pais!
Mandaram a minha mãe embora da maternidade sem mim e “esqueciam-se” de me alimentar porque para quem um simples suspiro poderia vir a ser o último não valia a pena a preocupação. O meu pai colocava o dedo no orificio da encubadora para me tocar e eu chupava sofregamente o dedo dele porque tinha fome! Aconselharam os meus pais a adoptar uma criança que tinha sido abandonada na maternidade pouco depois do seu nascimento, por cima do berço dizia: "Chamo-me Marta provisoriamente". A "Marta" era saudável e não tinha ninguém, eu tinha uma familia, um lar e uma vida à minha espera, mas já estava condenada a morrer... Ao invés de se resignarem, os meus pais, não só, não adoptaram a "Marta", como assinaram um termo de responsabilidade para eu "vir morrer a casa". Trouxeram-me com eles sem o apoio de unidades clínicas nem médicos ou enfermeiros especializados na minha doença.
A passividade face aos factos era unânime para quase todos, menos para eles, e a prova disso foi o meu baptismo urgente na maternidade, só um milagre me poderia salvar... Milagre? Só sei que me salvei, fui teimosa o suficiente e resolvi ficar! Contrariei os médicos e a realidade, até a minha condição frágil e fui forte para lutar a favor da vida. Escolhi viver porque fui escolhida. Hoje não tenho dúvidas de que nada acontece por acaso. Foi assim que começou a minha história. Surpreendi tudo e todos, com a ajuda d’Ele, superei as dores físicas e resisti. Hoje, encaro tudo como se já soubesse que precisava de viver para fazer os outros felizes, dar-lhes o meu SORRISO e a chance aos que me geraram de me amarem durante muitos anos.
Valeu a pena, eu fui teimosa e passei cada obstáculo do meu crescimento com uma fé inabalável em mim e em quem acreditava que eu era capaz. Quem me conhece sabe que sempre me aceitei tal qual sou e gosto muito de mim assim... quando soube quem era e o que estava cá a fazer neste mundo, percebi que Deus tinha-me dado a chance de mostrar aos outros que valia a pena viver sob todas as circunstâncias e por isso aceitei o meu existir quase como uma missão. Conheço bem o plano que está escrito para mim e todos os dias faço para o cumprir sendo eu própria. A infância foi a melhor possível e logo a partir do momento em que me conheci, encarei-me sem vergonha, o meu pensamento regia-se nisto: se cá estava era por algum motivo. Assim, independentemente da minha condição de vida, o importante é viver cada dia como se fosse o último e aproveitar a oportunidade que Alguém me ofereceu de partilhar as linhas da minha existência com quem continua a acreditar no meu viver. Os anos passavam e as experiências iam sendo adaptadas ao quotidiano de qualquer criança comum: o deixar a fralda e a chucha, a primeira visita ao pediatra, a primeira refeição, o primeiro dia de escola, as primeiras férias, os primeiros contactos com os outros meninos, etc. As coisas boas conseguiam atenuar as faltas pouco a pouco mas... só há algo que tenho pena de não ter feito: gostava de ter mamado pelo peito da minha mãe, não pelo sabor do leite, afinal nunca o provei, mas porque se tal acontecesse era sinal que não tinham cortado a minha mais pura fonte de sobrevivência logo nas minhas primeiras horas de vida... mais um sinal da pouca fé de todos na minha sobrevivência (secaram o leite à minha mãe com a justificação de que já não valia a pena).
No entanto, houve algo que por mais estranho que possa parecer eu não sinto falta nem nunca senti, o dia em que dei os meus primeiros passos... unicamente porque não os dei e porque jamais poderei dá-los! Fiz tudo aquilo que as crianças da minha idade fizeram na altura devida, nunca me escondi de nada nem ninguém e desde muito cedo habituei-me a ouvir os comentários infelizes e desnecessários por parte dos mais intrometidos, convivi com todo o tipo de questões e dúvidas dos mais curiosos, engoli os olhares de pena e caridade dos mais ignorantes. Por um lado, se calhar não era completamente indiferente ao que se passava (e ainda hoje não sou), mas por outro lado era desligada o suficiente para tudo isso me passar ao lado e não me ofender, revoltar, desmoralizar, isolar ou sentir pena da mim.
Eu não sou uma “coitadinha” e aqueles que não conseguem olhar-me para além das aparências é porque ou não têm a capacidade para o fazer ou então é porque a ignorância supera a vontade. Os meus familiares e os meus amigos, esses, têm sido toda a minha vida cegos, são os maiores cegos que conheço pois dão-me valor, orgulham-se das minhas vitórias, apoiam-me nos meus fracassos e cegam às diferenças.
Hoje, eu percebo que SER DIFERENTE não significa ser pior, todos os dias faço por continuar a ter fé na máxima e que "SER DIFERENTE pode significar SER ALGUÉM MELHOR".
Mafalda Ribeiro, http://mafaldaribeiro.planetaclix.pt/
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