sexta-feira, 25 de abril de 2008

Divórcio e protecção dos mais fracos

A apresentação do projecto de lei do Partido Socialista que introduz alterações à legislação sobre o divórcio tem dado enfoque mais a aspectos desse Projecto relativos à protecção das pessoas que possam ser prejudicadas com o divórcio, do cônjuge economicamente mais débil ou dos filhos, do que aos aspectos que representam sinais de facilitismo e que, consequentemente, se poderão traduzir em incremento do divórcio.

Importa desmascarar a distorção que pode resultar deste enfoque. Os danos que do divórcio resultam para o cônjuge mais “fraco” e, sobretudo, para os filhos, nunca são completamente afastados em qualquer sistema de protecção, podem ser reduzidos, mas nunca anulados. É natural que um regime que facilita o divórcio, quanto mais não seja pela mensagem cultural que veicula, acabe por o incrementar. E esse incremento há-de conduzir necessariamente à desprotecção dos mais fracos. Parece ser uma evidência: com o aumento do divórcio há cada vez mais mulheres sós e pobres, há (não só por isso, mas também por isso) cada vez mais famílias monoparentais. O cônjuge mais “fraco” (normalmente a mulher) é também, com frequência, o cônjuge que é vítima da violação de deveres conjugais de que o outro cônjuge é responsável. O projecto em causa, ao retirar relevo à violação dos deveres conjugais e à culpa, por este motivo, desprotege, à partida, também o cônjuge mais “fraco”.

Ao ler a exposição de motivos do projecto, impressiona a visão quase idílica que parece querer dar do divórcio. O divórcio representaria não um drama pessoal ou um fenómeno socialmente nocivo, mas um sintoma da generalizada aspiração à autenticidade dos afectos, um simples passo na busca de uma nova experiência mais gratificante. Não é, porém, essa a realidade. Mesmo que o ordenamento jurídico quase pretenda escamotear essa realidade, ao abolir a figura do divórcio litigioso e ao deixar de dar relevo à culpa, não pode ignorar-se que, muitas vezes, há um cônjuge que é infiel e outro que é vítima de infidelidade, há um cônjuge que abandona e outro que é vítima de abandono. Não se trata apenas de “partir para outra”. Com frequência, é apenas o homem quem “refaz a sua via” e contrai uma nova união.

Ao reflectir a visão tida por “pós-moderna” do “amor líquido” (segundo a famosa expressão do sociólogo Baumann), avessa a vínculos duradouros, e do divórcio como simples transição para uma experiência mais gratificante, essa exposição de motivos parece ignorar que na busca dessa gratificação individual vai ficando pelo caminho o maior empecilho a essa concepção de “amor líquido”: os filhos. Ao descaracterizar o casamento como vínculo assente em compromissos duradouros, a mensagem cultural que decorre deste projecto não deixa de traduzir-se, antes de mais, em desincentivo da própria natalidade. Por outro lado, qualquer projecto que acarrete, directa ou indirectamente, um incremento do divórcio nunca deixará de afectar aqueles que, invariavelmente, são a parte mais fraca: os filhos. Por muito que se pretenda minimizar os danos do divórcio para estes, e que se pretenda manter (como faz o projecto) um contacto frequente com ambos os progenitores através do sistema da guarda conjunta (sistema que poderá ter essa vantagem, mas também potencia a conflitualidade e a mais frequente intervenção do tribunal no âmbito íntimo das opções familiares), nunca se tornará normal e benéfica para o crescimento harmonioso dos filhos a separação dos pais. Mesmo que se trate, por vezes, de um mal menor, essa separação nunca deixa de ser um mal.

Para além desta questão, importará analisar mais especificamente as alterações propostas e ver se delas decorre um regime de protecção do cônjuge mais “fraco” .

No regime vigente, essa protecção traduz-se, entre outros aspectos, no dever de alimentos (em que se inclui a prestação do necessário para assegurar o sustento, habitação e vestuário) que impende sobre o cônjuge declarado culpado e que subsiste para além da dissolução do casamento. Esse dever supõe a incapacidade do ex-cônjuge que dele beneficia para obter por si os recursos em questão. O montante dos alimentos mede-se pelo trem de vida na constância do casamento. O beneficiário não deve baixar esse trem de vida por causa do divórcio. Para compreender este regime, importa ter presente que ele decorre do dever de assistência, o dever de prover às necessidades do outro cônjuge em caso de incapacidade deste, um dever que caracteriza (com os deveres de respeito, fidelidade e cooperação) o próprio casamento. Não se trata, pois, de um injustificado incentivo ao “parasitismo”, mas da decorrência de um dever que foi assumido com a celebração do casamento e que perderia todo o relevo se qualquer dos cônjuges dele se pudesse injustificadamente desvincular em caso de dissolução do casamento com base na sua própria culpa. Para com o cônjuge que sempre se manteve fiel aos seus compromissos não seria justo proceder de outro modo.

O regime proposto elimina o relevo da culpa na dissolução do casamento. O dever de alimentos não deverá, assim, depender da culpa de qualquer dos cônjuges, mas da verificação objectiva de uma situação de carência decorrente da dissolução do casamento. Embora com alguma incoerência, mas que não deixa de revelar alguma sensatez, ficam, porém, ressalvadas, situações excepcionais em que seria chocante fazer recair sobre o cônjuge “inocente” um dever de alimentos em benefício do cônjuge culpado (embora não se aluda expressamente a esta situação, o que seria mais conveniente e seguro, parece que é a ela que se aplica a referência do artigo 2016º, nº 3, do Código Civil revisto nos termos do projecto, às razões de manifesta equidade que podem conduzir à negação do direito a alimentos).

O montante dos alimentos deixa de ser medido pelo trem de vida do cônjuge anterior à dissolução do casamento. É o que decorre, claramente, do artigo 2016º-A, nº 3. Passará, então, a ser medido (na ausência de outro critério) pelas estritas necessidades de uma sobrevivência minimamente digna. Verifica-se, assim, que a protecção do cônjuge mais “fraco” sai profundamente afectada com o novo regime. Se é verdade que o dever de assistência não perde todo o relevo, pois a obrigação de alimentos pode manter-se depois da dissolução do casamento, tal dever passa a ter um alcance substancialmente menor, o que acarreta para o cônjuge “inocente” uma quebra do seu nível de vida, que pode ser abrupta, mas que, sobretudo, é injusta à luz dos compromissos assumidos por ambos os cônjuges com o casamento e pode criar uma inconveniente discrepância entre o nível de vida do progenitor a quem são habitualmente confiados os filhos (a mãe) e o nível de vida destes (pois, quanto a estes, o dever de alimentos continua a medir-se pelo critério da manutenção do teor de vida anterior à dissolução do casamento). Também neste aspecto se vê como o “divórcio sem culpa” prejudica a parte mais fraca, que é, com frequência, também a que não tem culpa. E favorece a parte mais forte, que é, com frequência, também a parte culpada.

É verdade que serão hoje mais raras as situações de mulheres casadas que não trabalham fora de casa e estarão, por isso, menos habilitadas para encontrar emprego depois do divórcio. Mas a opção do trabalho doméstico pode ter sido imposta pelo número elevado de filhos. Ainda que raras, são situações que o legislador atento à protecção dos “mais fracos” não pode deixar de contemplar. E, por outro lado, as situações que podem estar na origem da obrigação de alimentos não são apenas as que derivam do trabalho da mulher casada no âmbito da família. São também situações de incapacidade para o trabalho devida a doença. Essa doença pode ser superveniente e até pode configurar-se uma situação em que o motivo do divórcio é a própria doença, que leva ao abandono do cônjuge doente por parte do outro cônjuge. Por muito chocante que seja esta situação, o projecto recusa, também neste caso, falar em “culpa”. Manter-se-à um dever de alimentos, mas, também neste caso, limitado ao que é estritamente necessário à sobrevivência .

Por outro lado, o artigo 2016º-A, nº 2, estatui que o tribunal deve dar prevalência a qualquer obrigação de alimentos relativamente a um filho do cônjuge devedor sobre a obrigação emergente do divórcio em favor do ex-cônjuge. O que, considerando que a obrigação de alimentos para com os filhos continua a medir-se pelo trem de vida anterior ao divórcio e que da nova união do cônjuge devedor podem surgir outros filhos, servirá de fácil pretexto para reduzir ou anular a obrigação de alimentos para com o ex-cônjuge (a tal parte mais “fraca” que é, assim, injustificadamente menosprezada).

Há, ainda, que considerar, que a obrigação de alimentos passa a ser fixada por um período limitado, embora renovável, salvo razões ponderosas (artigo 2016º-B). Este facto cria uma maior instabilidade para o cônjuge carenciado e riscos de maior litigiosidade.

Por tudo isto, não me parece que das alterações ao regime do divórcio constantes do projecto de lei do Partido Socialista resulte um reforço da protecção das partes envolvidas que, pela sua debilidade, dessa protecção mais careçam.

Pedro Vaz Patto

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