sexta-feira, 16 de março de 2012
Era uma vez um escriba que trabalhou uma temporada na Alemanha. No primeiro dia, como bom português, o escriba não saiu à hora certa. Ficou a trabalhar até tarde. No dia seguinte, o chefe chamou-o: "Heinrich Raposieren, não voltas a fazer isso; se não fazes o teu trabalho até às quatro e meia, então, não sabes trabalhar". Ao início, o escriba não encaixou aquele rigor, e participou na indignação portuguesinha que recebia via telefone: "epá, estes tipos são mesmo frios". Mas o tempo, a vidinha e a fruição do horário 8h-16h mudaram a perspetiva do pobre escriba. Nesta saga luso-germânica, o alemão é que tinha razão. O Herr chefe limitou-se a colocar o dedo na ferida de uma nobre tradição portuguesa: estar muitas horas no trabalho não é o mesmo que trabalhar durante muitas horas. Naquele dia, o escriba passou muito tempo a beber bicas coletivas (com as eslavas), a cochichar e a 'facebookar' (um cochicho armado aos cucos). Resultado? Ficou a trabalhar até às tantas para compensar as horas perdidas.
Durante muito tempo, o escriba pensou que o reparo do Herr chefe estava relacionado apenas com a produtividade. Mais uma vez, o escriba estava errado. A 'Mãe' e a 'Família' também estavam presentes naquele choque tuga-teutónico. Não é difícil perceber porquê. O horário de trabalho em Portugal é o horário do solteirão inveterado. Acorda-se tarde, começa-se a trabalhar tarde, trabalha-se até tarde, marcam-se reuniões para as 7 da tarde. É como se toda a gente trabalhasse na redacção de um jornal diário. Este dia-a-dia pode ser perfeito para o Don Juan trintão, mas é infernal para a mulher com filhos e, sobretudo, para a mulher que quer ter filhos. A gravidez, a licença de parto e o filho são três figuras que não rimam com este quotidiano feito à medida do marmanjo com cromossoma Y e hábitos de noctívago: "os bifes vão para a cama às dez e meia. Que totós!". Repare-se que não é uma questão de ritmo, mas de horário. O ritmo de trabalho do Herr chefe é frenético, mas acaba às quatro da tarde. O resto da tarde é da família e, já agora, da pirâmide demográfica.
Uma sociedade que transforma a gravidez numa ameaça para a própria mulher já não é bem uma sociedade. É um suicídio demográfico em câmara lenta e sem banda sonora. Sim, sem banda sonora. Não há um acorde de preocupação sobre este assunto. Aliás, o melhor comentário que o escriba já ouviu sobre o inverno demográfico português veio da boca de um indivíduo que come salsicha com couve todos os dias. O Herr chefe não é tão frio como parece. Nós, com a nossa bravata latina, festiva e machona, é que estamos a ficar frios. Demograficamente frios. Demograficamente fritos.
Henrique Raposo, Expresso, 8 de março de 2012
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