A Crise
Diagnósticos não faltam, medicação também não. A economia mundial e a economia nacional constantemente analisadas e vigiadas por diversas equipas de médicos de diversas especialidades. Em 2007, foi a fase do Subprime, depois em 2008 a doença declarou-se inequivocamente e chamaram-lhe Crise Financeira, tendo sido necessário avançar com dramáticas intervenções cirúrgicas, que resultaram temporariamente. Depois de meses de acentuada contracção económica, em meados de 2009 parecia que a doença estava a ficar dominada e a economia internacional começava a querer recuperar, mas foi sol de pouca dura, após alguns meses de aparente acalmia, em inícios de 2010 a instabilidade regressa em força , desta feita com um novo quadro clínico, a Crise da Dívida Soberana, pondo em causa activos até então considerados dos mais seguros e estáveis a nível internacional, títulos de dívida pública da zona Euro. De certa maneira, esta terceira fase da crise é um corolário lógico das fases anteriores, em que os Estados, com a sua intervenção no sistema bancário e em toda a economia, tentaram ao máximo, por um lado, evitar o colapso do sistema financeiro, e por outro, conter e amortecer o mais possível os efeitos sociais da paragem entretanto verificada a nível da economia real. A campanha levada a cabo pelos governos no sentido de afastar a economia mundial de um precipício semelhante ao da Grande Depressão de 29 acabou no entanto por consistir num adiamento dos problemas e num gasto antecipado das munições, na medida em que os Estados basicamente compraram os incobráveis bancários em todo o mundo desenvolvido, evitando as quebras, saneando ou mesmo nacionalizando inúmeras instituições, e foram pagando, com crédito soberano, de forma insustentável, a manutenção do nível de vida aos cidadãos eleitores, em todas estas economias que já não apresentavam qualquer dinâmica de crescimento, na esperança de que o simples passar do tempo trouxesse, por obra do destino, alguma recuperação.
Ao longo de todo o tempo, e já lá vão 3 anos, os responsáveis políticos verdadeiramente nunca reconheceram publicamente a durabilidade e profundidade da crise, afirmando sempre o seu domínio da situação, a sua confiança na evolução dos acontecimentos e a sua esperança na recuperação da economia. Tornou-se evidente a falta de sinceridade, de honestidade e de verdade ao disfarçarem a real situação das economias à população em geral e foi manifesta também uma grande incapacidade de previsão e antecipação dos acontecimentos. De resto, os nomes atribuídos às várias fases da doença foram servindo para camuflar e mascarar o problema e para manipular expectativas, senão vejamos: na fase do Subprime, a crise assumiu esta palavra de código que tinha diversas vantagens políticas, limitava desde logo a génese da situação aos EUA e mesmo aí o problema parecia limitar-se à concessão de empréstimos a estratos sociais mais baixos que rapidamente se tornaram incobráveis após o rebentar da bolha imobiliária, abalando o sistema bancário americano e afectando depois os bancos de todo o mundo, em virtude da disseminação de produtos estruturados à escala global. Estando a doença, e a sua origem, bem identificadas, seria mera questão de meses ou uns quantos trimestres, para dar a volta às dificuldades e pôr a economia de novo a crescer. Sucede que, de 2007 para 2008 a situação, ao invés de melhorar, agrava-se drasticamente atingindo o clímax a 15 de Setembro de 2008, com a falência da Lehman Brothers, um dos maiores bancos de investimento americano ao qual todo o sistema financeiro internacional estava exposto. Se o subprime foi talvez a fase de gestação da crise, a falência da Lehman terá sido o seu parto, de resto bem doloroso. Seguiram-se semanas dramáticas, traumáticas, com a necessidade de operações de socorro de emergência de diversos bancos nos EUA e na Europa, também em Portugal, com a nacionalização do Banco Português de Negócios. Contudo, como o enfoque da crise continuava a estar na periclitante situação do sector financeiro, isso permitiu uma vez mais aos decisores políticos dissimularem a real situação da economia e continuarem a chamar à doença Crise Financeira, tranquilizando assim a generalidade dos cidadãos e os incautos eleitores. Claro está que o desemprego ia subindo e a economia estagnava mas, se era um problema dos bancos, da alta finança, com o qual os governos iam lidando, mais tempo menos tempo estaria resolvido e ultrapassado…
Passadas que estão as ilusões e vãs esperanças recentes, neste momento é já praticamente impossível a quem quer que seja negar que estamos a viver uma profunda e duradoura Crise Económica e, tendo já passado por um período de forte recessão em final de 2008 e início de 2009, nos Estados Unidos e na Europa, muito provavelmente a ela voltaremos já no próximo ano de 2011, quer em Portugal, quer em muitos outros países, em especial na Europa. Tratemos as coisas pelos nomes: a doença, melhor, a epidemia, é grave e ninguém demonstra saber muito bem como vai ela evoluir. Já foram tentados inúmeros tratamentos possíveis, e em doses muito fortes, quer estímulos fiscais, quer monetários, mas a verdade é que o doente não reage e o quadro clínico tem vindo a deteriorar-se. Entretanto, mais ou menos a salvo da epidemia, ou bastante menos fustigados por ela, parecem estar, em todo caso, os países emergentes, pelo menos para já. Serão eles os culpados… por estarem a crescer? Desde logo, a concorrência que as economias emergentes representam para os Estados Unidos e Europa significa, naturalmente, menos crescimento no mundo desenvolvido e mais desenvolvimento no ex-Terceiro Mundo. Estas duas faces da moeda significam por um lado um início de resolução de problemas crónicos de pobreza em África, na América Latina e na Ásia, uma melhor redistribuição do rendimento mundial e, por outro lado, uma forte competição pelos recursos e ganhos de quotas de mercado aos países desenvolvidos, retirando-lhes a supremacia e mesmo hegemonia em muitos sectores da economia. Mas a Crise Económica da parte Norte da Terra, mais propriamente um pouco acima do trópico de Câncer, vai muito para além do realinhamento e nivelamento económico, e da melhoria de estatuto dos países emergentes. De resto, a própria dinâmica dessas economias, China, Índia, Brasil, África, deveria provocar sinergias positivas nos mercados dos países desenvolvidos suficientes para abafar a crise. E não é o caso. Esta crise parece ser um ajuste bem mais violento e com raízes bem mais profundas.
Na economia, as questões podem ser vistas como a junção num imenso puzzle das opções e decisões dos indivíduos, das empresas, dos países, chegando-se por fim à dinâmica dos blocos económicos e à economia global. Ora, assim como qualquer indivíduo pode destruir a sua fortuna no casino e qualquer empresa pode enveredar por investimentos ruinosos, também os países e blocos económicos podem tomar decisões de investimento e estratégias erradas. Em particular, se um indivíduo ou uma família apostar num determinado projecto de longo prazo, por exemplo uma casa de habitação, ou uma segunda habitação, então é necessário que as expectativas de rendimento se materializem para fazer face ao serviço da dívida que foi contraída junto da banca. Do mesmo modo, se uma empresa se financia para poder levar a cabo um determinado projecto de investimento, é necessário que este dê frutos abundantes de forma a cobrir os custos de financiamento ao longo do tempo. Em ambos os casos, com bons investimentos, verificar-se-à um crescimento do património da família ou da empresa, com maus investimentos, um empobrecimento do património individual e, no caso da empresa, prejuízos ou mesmo a falência. À escala nacional, as crises resultam também das más estratégias e dos maus investimentos, mas não apenas resultantes da actividade económica em sentido estrito, também da performance da sociedade, do Estado, da gestão dos bens sociais, das infra-estruturas, de bens intangíveis como a justiça, a educação e formação, a saúde pública, o ordenamento do território, etc, etc. Quer a nível de países, quer a nível de blocos económicos, entram em jogo factores ainda mais profundos e de longo prazo, diríamos civilizacionais, como a demografia, natalidade e envelhecimento populacional, a estrutura da sociedade, a protecção da família, a protecção do ambiente. E todos esses factores dão o seu contributo, positivo ou negativo, a prazo, para a saúde da economia. Ou seja, quer a nível individual, quer sobretudo a nível colectivo, acabamos por colher, por vezes de forma brutal, aquilo que andámos a semear ao longo do tempo. A crise não é mais do que o saldo negativo, em cifrões, na actividade económica num dado momento, entre o que de mau e o que de bom fizemos ao longo do tempo. Por exemplo, aqui em Portugal muito se falou do desperdício que representava a construção de 10 estádios de futebol para o Europeu de 2004. Hoje em dia, com os recursos que desperdiçámos ao longo dos anos, fundos mal empregues, formação sem qualidade nem utilidade, subsídios sem critério, investimentos sem nexo a todos os níveis, talvez já não possamos levar a cabo sequer projectos que realmente modernizariam a nossa economia como o TGV para Madrid ou o novo aeroporto de Lisboa. E verificamos agora que, bem para lá da mera contracção salarial ou congelamento das pensões, há também cada vez mais fome à vista de todos, nas ruas, à noite, nas filas das carrinhas de distribuição de alimentos, e também nos centros paroquiais por esse país fora. Mas, como já sabemos, este problema não é só nosso. Noutros países da União Europeia também já há fome e quebras significativas do nível de vida. A generalidade dos países europeus está em grande dificuldade para manter os standards de qualidade dos serviços públicos, da assistência social, os apoios no desemprego. As pensões de reforma estão em risco, os salários caem, os subsídios de desemprego acabam, a protecção na doença torna-se cada vez mais cara e inacessível.
Investimos mal, durante muitos anos. E consumimos muito, em vez de investir e poupar. Tomámos a especulação imobiliária por poupança, a especulação financeira por investimento. E acreditámos que os sinais positivos dos mercados nunca nos conduziriam a um beco, onde agora estamos. Tivemos uma fé inabalável nos bens materiais, no imobiliário, no consumo. E também acreditámos que os bons tempos sempre nos sorririam. Por isso nos endividámos: não foi para criar famílias mais numerosas nem para dar educação mais completa aos nossos jovens, não. Endividámo-nos para termos mais carros, de maiores cilindradas, para fazermos mais férias, em destinos mais longínquos. Endividámo-nos para trocar de casa, de mobília, até para trocar de família. As regras morais e os costumes alteraram-se ao longo das últimas décadas e isso abriu a porta à crise demográfica que agora vivemos. Como é patente, não há sistema de reformas nem de protecção social que aguente sem vitalidade demográfica e sem a natural substituição das gerações. Ao dissociar radicalmente o sexo da reprodução, décadas atrás, abriu-se caminho ao outono ou inverno demográfico… As prioridades da sociedade inverteram-se ao longo dos anos. O tempo de lazer foi sendo progressivamente desviado da família e da prática religiosa para futilidades como o abundante telelixo ou o omnipresente futebol. Estrelas do cinema, do desporto e da música cobram mais aos fãs anualmente do que eles mesmos pagam, na qualidade de contribuintes, em impostos e prestações à segurança social, por exemplo. Essas estrelas fugazes sobem no firmamento, brilham, dilapidam fortunas e apagam-se rapidamente. As desigualdades e desequilíbrios sociais, de que todos são cúmplices, continuam a agravar-se. O abandono da agricultura, da pesca e de grande parte das artes e ofícios de outrora tem o reverso da medalha na necessidade, no caso de Portugal, de importar quase tudo. Mas esse desequilíbrio entre produção e consumo existe na Europa em geral, e nos Estados Unidos de forma bem visível nas estatísticas. Outra chaga da nossa sociedade, a droga, está claramente, correlacionada com a decadência dos valores morais e a desagregação da família, constituindo nitidamente um factor de destruição de riqueza, o principal responsável pela criminalidade e pela insegurança, e mais um contributo negativo para a economia. Claro está, nalguns países mais expostos ela é responsável pela guerra e por assassinatos em massa. Ou seja, um consumidor de cocaína nos EUA é também co-responsável pelos assassinatos dos cartéis da droga no México ou das forças de guerrilha na Colômbia.
Soluções? A curto prazo, não há milagres. A longo prazo, talvez, desde que muita coisa mude. O regresso à tradição, à religião, à família, o redimensionamento das cidades e o regresso ao campo de parte da população, a reabilitação da agricultura de subsistência, um consumo moderado e não desenfreado, a reabilitação do convívio, num mesmo tecto, das várias gerações. O bom aproveitamento da sabedoria dos velhos, da energia dos jovens, da riqueza das crianças. A proibição do aborto, a perseguição do consumo e tráfico de droga, a condenação da homosexualidade, o desincentivo ao divórcio, a condenação social da imoralidade nos meios de comunicação e no espectáculo. A dignificação do trabalho, do esforço, da aprendizagem. A valorização da poupança, a condenação da usura. … Enfim, a leitura da Bíblia, do Corão, de outros livros sagrados e sábios, onde estão as soluções, desde há muito tempo atrás…
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