sábado, 22 de novembro de 2014

Mentalidade anti-natalista em Portugal

 
 
“’É casada há quanto tempo?’ ‘Há cerca de três meses.’ ‘E bebés?’ “Referi que de momento não tencionava ter filhos. De seguida surge novamente uma observação: ‘Já tem 34 anos, não pode atrasar muito mais!’ Referi novamente que não tencionava ter filhos, uma vez que pretendia trabalhar por já estar desempregada há algum tempo. Fui novamente confrontada com a seguinte observação: ‘Sabe que a gravidez pode condicionar a vida profissional!’”
No assunto do email enviado à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) lia-se “desabafo”. “Com este texto apenas pretendo dar a conhecer a outras pessoas que a discriminação não acontece apenas nas grandes empresas das cidades, mas em todo o lado e até em empresas que ganham prémios PME Líder”, refere esta mulher, que nunca se identifica. “Sei que não haverá consequências para a empresa, pois nada tenho que prove a discriminação, mas pelo menos fico com o sentimento de dever cumprido!”
Esta é apenas uma de muitas queixas que recebem. Esta chegou esta semana, referiu ao PÚBLICO a presidente da CITE, Sandra Ribeiro. Todos os dias chegam à Linha Verde da CITE, serviço de informação gratuito da comissão (800 204 684), cerca de cinco queixas informais de mulheres como esta a quem, no processo de recrutamento para trabalho, é perguntado algo como: “Então e bebés?” São muito raras as que avançam para queixas formais. “Não temos nenhuma queixa sobre recrutamento com perguntas discriminatórias entrada este ano”, diz a responsável.
A Ordem dos Médicos denunciou nesta quinta-feira o caso de várias médicas a quem, nos concursos de selecção para unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS), foi inquirido se pretendiam engravidar, algo que o bastonário, José Manuel Silva, veio condenar. O bastonário referiu que a denúncia foi feita a um advogado da Ordem dos Médicos. José Manuel Silva afirmou que a situação se passou em entrevistas em concursos de provimento de admissão em unidades do Sistema Nacional de Saúde, embora as jovens médicas em causa não queiram identificar-se, nem nomear os júris em que a situação ocorreu, por receio de serem penalizadas. Contudo, o advogado a quem estas médicas solicitaram ajuda colocou a questão por escrito à direcção da Ordem, escreveu a Lusa.
Sandra Ribeiro diz que a CITE não recebeu qualquer queixa das médicas e apela as estas mulheres para que avancem com uma queixa formal: “Gostaria de fazer um apelo às jovens médicas para que apresentem queixa do ocorrido junto da CITE, que é o mecanismo nacional da igualdade com competências para apreciar queixas sobre discriminação de género no acesso ao emprego.”
“O que me entristece e me deprime é estas perguntas terem sido colocadas por médicos”, afirmou o bastonário num encontro com jornalistas, para promover o XVII Congresso Nacional de Medicina, que decorre na próxima semana em Lisboa, que tem como um dos temas precisamente a questão da promoção da natalidade em Portugal. “As mulheres têm cada vez menos condições para engravidar. Não se dá estabilidade, nem condições de trabalho com dignidade e ainda se põem entraves. Perante isto, tudo o que se possa falar de medidas para aumentar a taxa de natalidade é uma hipocrisia”, declarou o bastonário, citado pela Lusa.
Não há queixas formais
A presidente da CITE diz que este tipo de práticas discriminatórias é transversal a todos os sectores, a saúde não é excepção. À Linha Verde da CITE chegam todos os dias queixas que relatam este tipo de situação e em que as mulheres perguntam: “É legal esta pergunta?” O que respondem é que não, viola o princípio constitucionais da igualdade e é expressamente proibido pelo Código de Trabalho
“Temos noção de que é prática corrente perguntar às mulheres na fase de recrutamento se estão a pensar engravidar.” O problema é mesmo a falta de queixas formais. “É muito raro que as pessoas venham formalmente apresentar queixas. Dizem que estavam sozinhas quando lhes foi feita a pergunta na entrevista, que não têm forma de provar, e que não estão em condições de denunciar.” E recusam revelar o nome da empresa com receio de serem prejudicadas no mercado de trabalho.
No caso do sector privado, a responsabilidade para aplicar penalizações nestes casos cabe à Autoridade para as Condições do Trabalho, que pode aplicar coimas que variam de acordo com o volume de negócio da empresa, explica Sandra Ribeiro. No sector público cabe às inspecções dos ministérios agir, mas não está previsto nenhum sistema de contra-ordenações. “No limite, pode haver procedimento disciplinar”, diz.

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