Multiplicam-se as
explicações sobre as raízes da crise financeira, económica, social e de valores
que vivemos. Não há uniformidade nos argumentos e nas razões, no entanto parece
não haver dúvidas sobre alguns factos tão simples como perturbadores.
O consumismo tornou-se
uma doença vertiginosa e perigosa. As sociedades da abundância julgaram poder
perseguir um progresso ilimitado, com a ilusão de que tudo poderíamos consumir,
sem cuidar da limitação dos recursos. A poupança foi desvalorizada, como se
fosse possível investir sem criar uma base capaz de fazer face às necessidades
de preparar o futuro e de criar condições para multiplicar a riqueza. O crédito
fácil tornou-se uma perigosa armadilha em que muitos caíram, julgando que o
dinheiro barato era um adquirido definitivamente. A especulação, a idolatria do
mercado e as economias de casino pareceram tomar o lugar da criação, do
trabalho e do esforço. A circulação do capital financeiro gerou a ideia de que
a afluência de dinheiro, mesmo ilusória, poderia ser confundida com a geração
de riqueza duradoura.
As gerações presentes
começaram a gastar, assim, os recursos das gerações futuras — e a participar
ativamente na destruição da natureza e do meio ambiente. E deste modo a
economia perdeu a compreensão de que "o que tem mais valor é o que não tem
preço" (na expressão clássica de François Perroux), assim como se
desvalorizou um sentido ético da utilização dos recursos disponíveis e da sua afetação
à satisfação de necessidades.
(...)
"A era do crédito fácil, a era de viver à base das dívidas e de gozar o
momento, o carpe diem da economia terminou."
A crise é de sociedade,
uma vez que afeta os vínculos entre as pessoas. E se quase todos têm a palavra
solidariedade na boca, o certo é que há mil motivos para esquecê-la - em nome
do individualismo atomístico, do egoísmo utilitarista e da ausência de
reciprocidade. A gratuitidade é esquecida, e hoje volta à ordem do dia por
ausência de meios. As pessoas são obrigadas por sobrevivência a não pensar tudo
em razão do preço e da contrapartida.
(...)
Perante a crise do
Estado providência e a ausência da Sociedade providência, impõe-se encontrar
novas soluções que compreendam a distinção e a complementaridade, referida por
Paul Ricoeur, entre sócio e próximo, sendo que o cidadão participa das duas
qualidades.
Para o sócio e para o
próximo é indispensável haver sentido de partilha e de entreajuda. Mas enquanto
o sócio exige o dever geral de cooperação, o próximo obriga à responsabilidade
especial inerente ao amor (ágape).
(...)
"O binómio
mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas solidárias, que
encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela,
criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem
estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e, todavia, tanto o mercado como
a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco." (Caritates in Veritate n. 39)
Oiçamos, de novo, Bento
XVI: "O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores
económicos e homens políticos que sintam intensamente em suas consciências o apelo
do bem comum. São necessárias tanto a preparação profissional como a coerência
moral." (n. 71) .
(...)
Patrick Artus e Marie-Paule Virard, no seu livro intitulado Globali-sation: le pire est à venir (La Découverte, 2008) afirmaram
profeticamente, num momento em que o que hoje sentimos ainda não se
manifestara: "O pior ainda está para vir, em resultado da conjugação de
cinco características maiores da globalização: uma máquina inigualitária que
mina os tecidos sociais e atiça as tensões protecionistas; um caldeirão que
queima os recursos raros, encoraja as políticas de concentração e acelera o
reaquecimento do planeta; uma máquina que inunda o mundo de liquidez e que
encoraja a irresponsabilidade bancária; um casino onde se exprimem todos os
excessos do capitalismo financeiro; uma centrifugadora que pode fazer explodir
a Europa."
Hõlderlin ensinou-nos
que "onde cresce o perigo, cresce também o que salva".
A globalização
pode trazer-nos fatores positivos sobre os quais pode unir-se a humanidade no
sentido da paz. A consciência de uma Terra-Pátria, de que nos fala Edgar Morin,
é ainda marginal e disseminada. A globalização tecno-económica prevalece e
contraria a emergência da sociedade--mundo que pode estar a ser lançada. A mundialização
envolve, deste modo, o melhor e o pior, a emergência de um mundo novo e a
autodestruição da humanidade. Daí a ideia de metamorfose, improvável mas
possível, como alternativa à desintegração provável.
A natureza está cheia de
exemplos de metamorfoses - a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de
reconstrução autónoma. A noção de metamorfose é, assim, mais rica que a de
revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à
conservação da vida e à herança das culturas.
(...) quando se refere que o
Estado é hoje grande de mais, estamos a reivindicar mais iniciativas da
sociedade.
O Estado-providência terá por isso que superar a crise atual com
mais Sociedade-providência, com mais sentido comunitário.
Por isso, importa que
a sobriedade seja praticada, em nome do desenvolvimento humano, da
sustentabilidade e da proximidade das pessoas - pondo a eminente dignidade
humana em primeiro lugar.
Estamos perante uma
crise com lições muito urgentes.
Sobre Portugal, Gustavo Cardoso afirmou:
"Portugal tem de ser um nó numa rede global de cultura, economia e
política. Não lhe basta ser um pequeno país na Europa. Se assim for não teremos
um futuro brilhante." Trata-se de combater a mediocridade, a periferia e a
irrelevância. Mas, mais do que isso, importa que haja um projeto humano.
(...)
É esse o desafio." São
necessárias tanto a preparação profissional como a coerência moral. Eis o que é
inseparável. Temos de tirar lições dos erros, valorizando a experiência e a
aprendizagem. À fragmentação temos de saber contrapor a mútua compreensão e o
compromisso.
Guilherme d'Oliveira
Martins
Presidente do Tribunal de Contas, presidente do Centro
Nacional de Cultura
In Communio 2012 (1)
12.09.12
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