terça-feira, 18 de setembro de 2012

A DISCUSSÃO SOBRE O “TESTAMENTO VITAL” EM ITÁLIA E EM PORTUGAL


A questão da regulação legal do chamado “testamento vital” está entre nós na ordem do dia. Depois de na 11ª legislatura terem sido apresentados quatro projectos de Lei e de a dissolução da Assembleia da República ter interrompido o processo legislativo a tal relativo, voltaram a ser apresentados projectos nesta legislatura e o processo teve o seu desfecho com a aprovação e publicação da Lei  .

Em Itália, a questão também tem sido objecto de discussão, particularmente viva. A Câmara dos Deputados aprovou uma lei contendo “disposições em matéria de aliança terapêutica, consentimento informado e declarações antecipadas de vontade”, sendo que, porem, no momento em que escrevo (Julho de 2012), o processo legislativo ainda não teve o seu desfecho, pois se aguarda a discussão da mesma no Senado.

 Parece-me do maior interesse a análise da argumentação subjacente ao conteúdo desta lei italiana, confrontando-a com os vários projectos discutidos e a lei que veio a ser aprovada entre nós.

 

A discussão em Itália

 

Na verdade, a lei italiana, constitui, na expressão da neurologista e deputada Paola Binetti, «uma das leis que mais apaixonou a opinião pública nos últimos cinco anos»[1]. Em favor da sua aprovação empenharam-se afincadamente os principais movimentos católicos e os representantes da hierarquia eclesiástica. O cardeal Bagnasco, presidente da Conferência Episcopal Italiana, considerou-a “necessária e urgente” numa sua comunicação à assembleia-geral dessa Conferência[2]. Nesse sentido também se pronunciaram o cardeal Elio Sgreccia, presidente emérito da Academia Pontifícia pela Vida[3] e Mons. Ignacio Carrasco de Paola, actual presidente dessa Academia[4]. Foram lançados um manifesto de 23 associações católicas[5] e um apelo ao Parlamento subscrito por intelectuais, universitários e responsáveis da comunicação social dessa área[6], ambos em favor dos princípios que vieram a ser consagrados nessa lei. Também nesse sentido se pronunciou a associação dos médicos católicos italianos[7]. A aprovação da lei foi aplaudida pelas associações Movimento per la Vita, Forum delle Associazioni Famiglari e Scienza e Vita[8].

Os princípios consagrados na lei, que justificam este apoio, resultam da rejeição firme da eutanásia activa ou passiva e do respeito pela indisponibilidade da vida humana, ao mesmo tempo que se rejeita a exacerbação terapêutica (obstinação, excesso ou encarniçamento terapêuticos). Como pano de fundo da discussão, não pode ignorar-se o episódio da morte de Eluana Englaro, uma jovem em estado vegetativo persistente, privada, por decisão judicial na sequência de decisões contrárias anteriores, da alimentação e hidratação que a mantinham em vida desde há vários anos. Evitar a repetição de mortes como essa (então objecto de acesa discussão) com autorização judicial e sem apoio legal, foi objectivo da lei, até então não considerada necessária por vários dos seus actuais apoiantes. Uma decisão análoga do Tribunal Federal alemão, recente e inovadora (que absolveu um advogado que aconselhou a filha de uma doente em estado vegetativo persistente a fazer cessar a sua alimentação e hidratação)[9], também não deixou de servir de motivo para o conteúdo da lei aprovada.

O campo oposto, dos adversários da lei, também se moveu com grande empenho. A razão principal da crítica diz respeito à irrelevância da vontade não actual do subscritor de uma declaração antecipada de tratamento no sentido da rejeição de tratamentos necessários à salvaguarda da vida. Considera-se tal irrelevância contrária ao necessário respeito pela autonomia individual. Um dos principais expoentes dessa oposição, o jurista Stefano Rodotà, chegou a qualificar a lei como “quinta essência do despotismo ético» e expressão de um “fundamentalismo católico incompreensível”[10]. Esta crítica encontrou grande eco na imprensa laica[11]. Anunciam-se recursos de inconstitucionalidade e propostas de referendo de iniciativa popular tendente à revogação da lei.

A lei foi aprovada na Câmara dos Deputados com uma maioria de 278 votos a favor, 205 contra e 7 abstenções. Votaram a favor a grande maioria dos partidos que apoiavam o governo de centro-direita (Pdl e Lega Nord), deputados da oposição de centro (os democratas cristãos da Udc) e cerca de cinquenta deputados do Pd, principal partido da oposição de centro-esquerda (que assumiu, porém, uma posição oficial de oposição clara à lei). A transversalidade da aprovação da lei foi, assim, mais acentuada do que se previa inicialmente[12]. Como já referi, no momento em que escrevo (Julho de 2012) aguarda-se ainda a votação no Senado, condição de aprovação definitiva.

Do conteúdo da lei, há que destacar a rejeição da eutanásia e da exacerbação terapêutica; o princípio do consentimento informado actual e consciente como condição de um tratamento, a consagração do princípio da aliança terapêutica como linha inspiradora da relação médico-doente (contrário a uma visão paternalista do médico alheio à vontade do doente, mas também a uma visão daquele como simples executor da vontade deste fora do quadro da sua deontologia); a consagração do carácter não vinculativo das declarações antecipadas de tratamento (expressão intencionalmente adoptada por oposição à de “testamento vital” ou “testamento biológico”); e a relevância dessas declarações quanto à rejeição de tratamentos desproporcionados ou experimentais, mas não quanto a tratamentos úteis e proporcionais na perspectiva da salvaguarda da vida. Em particular, estatui-se que não é relevante uma declaração antecipada de tratamento de rejeição da alimentação e hidratação, ainda que por meios artificiais, salvo se estas se tornarem ineficazes face à capacidade de absorção do corpo (situação que já configurará um procedimento inútil ou desproporcionado). A lei pretende, deste modo, garantir a assistência, e o não abandono, aos doentes em estado vegetativo persistente, evitando a repetição de casos como o da morte de Eluana Englaro.

Foi este aspecto (a irrelevância das declarações antecipadas de tratamento no que se refere a tratamentos úteis e proporcionais à salvaguarda da vida e à rejeição da alimentação e hidratação artificiais) que motivou as maiores críticas à lei.

 

Em favor deste aspecto do regime legal aprovado, foram esgrimidos argumentos fundados num princípio de favor vitae, que não se confundem com razões confessionais especificamente católicas (apesar das aparências que possam decorrer do contexto da discussão da lei acima descrito).

Esses argumentos partem da necessidade da distinção entre um consentimento actual e consciente (que será sempre necessário) e um consentimento presumido ou hipotético, ainda que baseado numa declaração escrita anterior. Porque esta é elaborada num contexto muito diferente daquele em que se decide sobre o tratamento em questão, nunca é de excluir a possibilidade de mudança de perspectivas na iminência da morte. Nestes casos, a dúvida impõe uma decisão a favor da vida, pois estamos perante a mais irreversível das decisões. Já o afirmei em escritos anteriores:

« (…) Dir-se-á que há que respeitar o princípio da autonomia, evitar tratamentos forçados, respeitar uma vontade do doente previamente formulada quando este não a pode manifestar actualmente por estar inconsciente (a sua incapacidade não o faz perder direitos – argumenta-se). Mas é diferente o respeito por uma vontade actual e esclarecida (que não suscita dúvidas sobre o seu sentido autêntico) e o respeito por uma vontade hipotética, com base em declarações prestadas anteriormente num contexto muito diferente do actual (de forma necessariamente pouco esclarecida, precisamente por esse contexto ser diferente do actual). Não se trata apenas de considerar a dúvida sobre a informação a que possa ter tido acesso a pessoa quando formulou essa declaração, ou sobre se a situação em que se encontra agora era, para ela, nessa altura, previsível. Nem também a possibilidade de o estado dos conhecimentos médicos se ter alterado desde então. É que subsiste sempre a dúvida (independentemente do tempo decorrido e da possibilidade de revogação da declaração) a respeito de saber se a pessoa não poderia mudar de opinião.

É sabido como é frequente uma atitude de grande apego à vida nos seus últimos momentos e diante da revelação de uma doença, mesmo da parte de quem havia manifestado uma atitude contrária quando se encontrava são. Tem sido evocado o exemplo da médica francesa Silvie Ménard, que rasgou o seu testamento vital depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro, porque passou a querer “lutar” até ao fim. E um caso ocorrido num hospital de Cambridge em Julho deste ano também é significativo: estavam os médicos para desligar um aparelho que mantinha em vida Richard Ruud, um homem paralítico e inconsciente devido a um acidente, baseados numa declaração de vontade que este havia formulado verbalmente alguns anos antes a propósito de um amigo também vítima de um acidente análogo; quando ele, através do abrir e fechar de olhos, manifestou a sua oposição, que veio a ser atendida. Afirmou, então, o pai, que tinha autorizado os médicos a desligar o aparelho: “Estou feliz por lhe ter sido dada a oportunidade de sobreviver. Decidir se um filho deve, ou não, viver é quase impossível”.   

Está em jogo o mais fundamental dos bens e a mais claramente irreversível de todas as decisões. “Há solução para tudo menos para a morte” - diz o povo. Depois da morte, não há nada a fazer. Depois de salva a vida, quem disso beneficia sempre poderá pôr-lhe termo pelos seus próprios meios (o que até será pouco provável). Mais vale, pois, salvar uma vida do que tomar uma decisão irreversível que conduz à morte sem a certeza absoluta de que seria essa a vontade do doente. Esta dúvida há-de subsistir sempre. Rege aqui o princípio in dubio pro vita.

Por isso, não deverá ser vinculativa, nem deverá ser observada, uma declaração antecipada de vontade de recusa de tratamentos úteis e proporcionados na perspectiva da salvaguarda da vida. Só assim o testamento vital não será uma porta aberta à eutanásia.»[13]

Nesta linha também se pronunciaram os partidários da aprovação da lei italiana.

Francesco d´Agostino salientou como as declarações antecipadas de tratamento podem ter sido escritas muitos anos antes, ter perdido actualidade ou ser fruto de condições de incrível fragilidade psicológica, económica e mental, que tornam muito discutível a sua atendibilidade, baseada em informações inadequadas, apressadas e insuficientes. Não são, por princípio. “actuais” e ninguém pode ter a priori a certeza da capacidade de entender e querer do subscritor, sobretudo no que se refere às possíveis patologias e às relativas práticas médicas e bioéticas. Considerá-las vinculativas em qualquer caso seria expressão de uma “imperdoável ingenuidade iluminista” e traduzir-se-ia numa prática introdução da eutanásia (com outro nome) no ordenamento jurídico[14].

Rocco Buttiglione, filósofo e deputado, realçou que a renúncia a tratamentos de apoio vital ou terapias “salva-vida” é um acto pessoalíssimo que não pode ser delegado em ninguém, devido ao carácter extraordinário e irreversível do acto. Cada acto de vontade ocorre numa específica situação existencial e deve ser colocado nesse seu contexto. A situação do coma é diferente da do momento em que se redige tal declaração e não pode abstrair-se desta diferença. O caso das tentativas de suicídio, em que a pessoas acaba por agradecer a quem impediu a consumação deste, é a demonstração eloquente de como é frágil e precário o fenómeno da vontade em circunstâncias excepcionais, como é certamente o do momento da iminência da morte. Daí que se justifique uma presunção a favor da vida na ausência de uma vontade actual em sentido contrário. Para além desta questão de princípio, razões pragmáticas aconselham a evitar ao máximo o difundir de atitudes de rejeição de tratamentos necessários quando há inequívocas possibilidades de recuperação[15].

O filósofo Giacomo Somek Lodovici também salientou como a vontade pode mudar de acordo com as situações, e de um modo que nunca esperaríamos. Relembrou o caso de Sylvie Ménard, que, depois de se bater pela legalização da eutanásia e de ter redigido um testamento vital, mudou radicalmente de vontade quando lhe foi diagnosticado um cancro, afirmando que escreveu esse “testamento” quando estava sã, mas agora quer rasgá-lo e viver até ao fim, agora que «a morte não é um conceito virtual». E também o caso de Jean-Dominique Bauby, retratado no filme O escafandro e a borboleta, que, perante a sua imobilidade e incapacidade de comunicar sem ser através dos movimentos das pálpebras, inicialmente queria morrer e veio a mudar de propósito devido ao afecto que recebeu, vindo a relatar a sua experiência no livro que serviu de base a esse filme. É frequente que doentes graves inicialmente desejem morrer e posteriormente venha a prevalecer o seu apego à vida, sobretudo se assistidos, confortados e beneficiários de cuidados paliativos. Por tudo isto, o princípio da precaução justifica que a mínima dúvida sobre o sentido da vontade do doente (e isso verifica-se sempre que ela não é actual) leve à prevalência da protecção da vida[16].

A propósito do caso do inglês Richard Ruud, já acima referido, afirmou Michele Aramini, professor de bioética: «Uma coisa é a vontade que se exprime quando se está de plena saúde, ou sob a influência dolorosa da difícil condição existencial de um amigo ou familiar; outra completamente diferente é decidir sobre si mesmo no momento em que nos tornamos fragilíssimos e ligados à vida por um fio. Descobre-se, então, que não desejamos partir esse fio, por mais fino que ele seja.»[17] [18]   

Carlo Casini, jurista, deputado ao Parlamento Europeu e presidente do Movimento per la Vita apontou outra importante diferença entre uma expressão de vontade actual e consciente e uma expressão de vontade escrita por uma pessoa inconsciente no momento em que toma a decisão de renúncia a um tratamento. Em resposta à tese de Stefano Rodotà e de outros adversários da lei, segundo os quais o princípio da igualdade imporia a relevância, nos mesmos termos, de uma e outra dessas expressões de vontade, salienta que essa diferença reside na possibilidade, que existe no primeiro caso, mas não no segundo, de o doente ser aconselhado pelo médico e familiares. Este diálogo desemboca normalmente na aceitação de um tratamento que o doente inicialmente até poderia recusar. Neste diálogo, o conselho no sentido do tratamento útil e proporcionado é sempre de louvar, sendo o conselho ou a pressão em sentido contrário censuráveis, ou mesmo criminosos. A cristalização da precedente declaração fixa definitivamente a discriminação do doente inconsciente, que pode morrer sem a possibilidade de um diálogo que até poderia fazê-lo desistir desse propósito. Só com o carácter não vinculativo dessa declaração se garante a igualdade[19].

Salientando bem a diferença entre a vontade actual e a vontade antecipada, afirmaram Carlo Casini, Marina Casini e Maria Luisa di Pietro:

«As primeiras (as vontade actuais) são expressão de uma autonomia aberta à relação que se confronta com a situação real e concreta de doença ou deficiência; amadurecem no âmbito de uma aliança terapêutica na qual o médico se empenha pessoalmente de um ponto de vista humano e profissional. A comunicação, a informação completa e calibrada sobre o paciente, a escuta das verdadeiras necessidades do doente, a avaliação de todos os factores em jogo, a avaliação da doença ou do trauma de acordo com o que verdadeiramente representam naquele momento para aquela pessoa, tudo isto são elementos que concorrem para a formação de um consentimento, ou não consentimento, consciente e responsável. As segundas (as vontades antecipadas), pelo contrário, desligadas da situação objectiva de doença ou trauma, fora de uma “aliança terapêutica” e da real dimensão psicológica inevitavelmente determinada pela doença ou pela deficiência, afastam-se da actuação de um verdadeiro consentimento informado, acabando por reduzi-lo – contrariamente aos propósitos da doutrina e da jurisprudência – a uma prática documental, burocrática e administrativa, que responde mais às exigências de uma medicina defensiva do que às de um real participação do paciente no processo terapêutico que lhe diz respeito»[20].    

Também Mons. Roberto Colombo, membro da Academia Pontifícia da Vida e do Comitato Nazionale per la Bioética, salienta este aspecto: a escolha cristalizada numa declaração escrita antecipada não é uma escolha em confronto com quem está próximo do doente, o ama e o assiste, não é uma escolha partilhada com quem lhe quer bem e dele cuida; sendo que a pessoa e o doente não vivem numa ilha deserta, não são auto-suficientes e seguros de si, mas dependentes e em estado de necessidade física e psicológica. Considerar essa hipotética escolha como exercício de auto-determinação é abstrair das condições concretas, de tempo e lugar, em que se manifesta a vontade[21].

Cesare Mirabelli, presidente emérito do Tribunal Constitucional, também salientou estas ideias, de que o respeito pela autonomia não pode descontextualizar as manifestações de vontade e ignorar a falta de relação imediata com o médico. O consentimento informado supõe a sua actualidade, não é abstracto e hipotético, mas exige a avaliação da situação concreta da pessoa no contexto de uma relação de confiança como o médico. E invocou uma decisão da Corte di Cassazione que negou relevância a uma expressão de vontade de recusa de transfusão sanguínea de uma pessoa aderente à testemunhas de Jeová por não se tratar de uma expressão actual e não estarem, por isso, afastadas todas as dúvidas sobre a eventualidade de a pessoa ter mudado de propósito[22].

Numa perspectiva mais ampla, os partidários da lei acentuaram a centralidade do princípio da indisponibilidade da vida humana, que se sobrepõe ao da autonomia e justifica a punição da eutanásia voluntária. O relevo das declarações antecipadas de tratamento não poderá servir de antecâmara da eutanásia, contra o que pretendem muitos dos adversários da lei, alguns deles (não todos, certamente) também partidários da legalização da eutanásia.

Paola Binetti afirmou que a lei não despreza a autonomia, apenas não a absolutiza: tudo é permitido ao doente, excepto pedir a sua morte antecipada, quase tudo é permitido ao médico, excepto antecipar a morte do doente. É falsa a dicotomia entre a vida e a liberdade, pois esta não tem sentido sem aquela. O princípio da auto-determinação há-de ser conjugado com os princípios da beneficência e da tutela da vida[23].

Na verdade, não é lógico contrapor o valor da vida humana ao valor da liberdade e da autonomia. É que a autonomia supõe a vida e a sua dignidade. A vida é um bem indisponível, o pressuposto de todos os outros bens terrenos e de todos os direitos. Não pode invocar-se a autonomia contra a vida, pois só é livre quem vive[24][25]. Não se alcança a liberdade da pessoa com a supressão da própria pessoa. A eutanásia e o suicídio não representam um exercício de liberdade, mas a supressão da própria raiz da liberdade. O “direito à morte” seria ainda mais contraditório do que uma escravidão legitimada pelo consentimento da vítima. A liberdade não pode servir para se anular a si própria. Este princípio já servia de base a Kant para, antes de quaisquer outras razões, negar legitimidade ao suicídio. E também tem alicerçado a noção de indisponibilidade dos direitos humanos fundamentais, que as primeiras históricas declarações sempre afirmaram como “inalienáveis”, isto é, dotados de um valor objectivo e intrínseco, independente da vontade do seu titular.

O jurista Alberto Gambino também salientou, a propósito desta Lei, que o princípio da prevalência da tutela da vida humana e da sua dignidade sobre a autonomia também subjaz a muitos outras regras do ordenamento jurídico, desde a ilicitude de muitas formas de autolesionismo, do consumo e tráfico de drogas, da prostituição, do trabalho em condições humanamente degradantes, até ao uso obrigatório de capacete ou cinto de segurança[26].

Nessas e noutras situações (a punição do homicídio a pedido e do incitamento e auxílio ao suicídio; do consumo e tráfico de drogas; da escravidão mesmo que consentida; da exploração da prostituição, da maternidade de substituição ou do tráfico de órgãos; o carácter irrenunciável de direitos laborais ou de segurança social; a obrigatoriedade, mesmo contra a vontade do beneficiário, de regras de segurança no trabalho, segurança rodoviária e de segurança alimentar; a definição de um núcleo de risco ilícito no âmbito do desporto e do lazer; até a proibição de tomar banho na praia com bandeira vermelha) parte-se do pressuposto de que a vida humana e núcleos essenciais da dignidade, da liberdade e da saúde humanas são bens indisponíveis. É assim porque a vida é o pressuposto da própria liberdade. E também porque condições concretas de deficiente informação ou de debilidade existencial, social e económica fazem com que certas manifestações de vontade deixem de ser autêntica expressão de autonomia (o consentimento para a prostituição, a maternidade de substituição ou a venda de órgãos por parte de quem só assim consegue garantir a subsistência, por exemplo).   

A este respeito, o professor de Direito Penal Luciano Eusebi, também a propósito das declarações antecipadas de tratamento, acentuou os perigos para a situação dos mais débeis (existencial, familiar, social e economicamente) e, por isso, mais propensos a exprimir a rejeição de tratamentos eventualmente onerosos mas necessários e justificados. Não podemos ignorar um contexto de cada vez mais forte pressão cultural no sentido de a sociedade se libertar dos custos de terapias adequadas, mas onerosas. Neste contexto podem surgir pedidos de renúncia a tratamentos até com motivações pretensamente solidaristas de quem não quer ser um peso para a família e a sociedade, pedidos que uma solidariedade autêntica não pode aceitar, porque contrários à irrenunciável dignidade da pessoas em todas as fases da sua vida e particularmente em condições da maior debilidade[27]. Um aspecto também salientado por Rocco Buttiglione: há que evitar ao máximo o difundir de atitudes de rejeição de tratamentos necessários quando há inequívocas possibilidades de recuperação. A difusão dessas atitudes (uma potencial procura em massa da eutanásia) pode resultar da degradação das condições de vida dos anciãos na sociedade hodierna e do enfraquecimento da consciência da sua insubstituível riqueza, com a sua redução a um peso difícil de suportar[28]. 

 Como vimos atrás, esta lei consagra o princípio da aliança terapêutica como linha inspiradora da relação médico-doente, contrário a uma visão paternalista do médico alheio à vontade do doente, mas também a uma visão daquele como simples executor da vontade deste fora do quadro da sua deontologia. Paola Binetti salienta como a absolutização da autonomia é incompatível com essa aliança terapêutica entre o médico e o doente. O doente não está só, relaciona-se e esta relação traduz-se nessa aliança, que vai para além do contratualismo, supõe uma confiança recíproca, é feita de perguntas e respostas, fraquezas e apoios, ânsias e seguranças, dúvidas e receios. A autonomia do doente não justifica a indiferença do médico. A liberdade e dignidade do doente há articular-se com a liberdade e dignidade do médico no quadro deontológico da sua missão. Por isso, a aliança terapêutica só pode ser finalizada à salvaguarda da saúde e da vida, não da morte[29].  

Salientaram os partidários da lei que não está em causa alguma violação da Convenção de Oviedo (Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina), pois esta, no seu artigo 9º, não consagra o carácter vinculativo dos desejos previamente expressos por um doente que não esteja, no momento da intervenção, em condições de exprimir a sua vontade (estatui, antes, que estes devem ser “tidos em consideração”)[30]. Carlo Casini, que participou nos trabalhos preparatórios dessa convenção, invocou o facto de esta expressão (“tidos em consideração”) ter substituído a de uma proposta anterior que apontava num sentido vinculativo (“determinados por”)[31] 

À objecção de que a limitação da relevância das declarações antecipadas de tratamento à rejeição de tratamentos inúteis e desproporcionados as tornariam inúteis, pois essa rejeição já decorreria da própria deontologia médica, respondeu Lucio Romano, médico e co-presidente da associação Scienza e Vita, afirmando que entre os extremos de proporcionalidade e desproporcionalidade de um tratamento há uma margem de opções em que a vontade do próprio doente não pode deixar de assumir relevância[32].

 

Como já vimos, esta lei estatui que não é relevante uma declaração antecipada de tratamento de rejeição da alimentação e hidratação, ainda que por meios artificiais, salvo se estas se tornarem ineficazes face à capacidade de absorção do corpo (situação que já configurará um procedimento inútil ou desproporcionado). A lei pretende, deste modo, garantir a assistência, e o não abandono, aos doentes em estado vegetativo persistente, evitando a repetição de casos como o da morte de Eluana Englaro.

É de notar que a aprovação da lei foi, por este motivo, saudada por associações de familiares de doentes em estado vegetativo persistente[33][34]

Justifica-se a irrelevância de um pedido prévio de suspensão de alimentação e hidratação, pois esta suspensão conduz, em regra, à morte por inanição e desidratação, é causa directa, imediata e segura da morte, é a pessoa que assim procede a causar a morte; o que não se verifica em caso de suspensão de um tratamento extraordinário, em que a pessoa morre da doença que inevitavelmente a atinge[35].

Por outro lado, não pode dizer-se que a alimentação e hidratação sejam terapias (e possam, por isso, deixar de ser devidas quando extraordinárias), pois não vão de encontro a uma qualquer patologia ou disfunção e são necessárias também para pessoas não doentes. Não releva o facto de para tal se usarem meios artificiais, pois estes traduzem-se numa simples ajuda a quem não consegue sozinho prover a essa alimentação e hidratação (como sucede com o idoso com dificuldade de deglutição, ou o recém-nascido que é alimentado com leite artificial). Só não será assim quando, na iminência da morte, o organismo deixa de ter capacidade para assimilar as substância fornecidas e a alimentação e hidratação já não atingem o seu fim (situação excluída pela lei em apreço, como já vimos[36]).

Esta posição coincide com a do magistério da Igreja Católica, expressa no discurso do Papa João Paulo II ao congresso internacional "Life-Sustaining Treatments and Vegetative State:  Scientific Advances and Ethical Dilemmas", de 20/3/2004[37], e na resposta da Congregação para a Doutrina da Fé aos bispos norte-americanos, de 1/8/2007[38], assim como na Carta dos Profissionais de Saúde do Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde[39][40].

Mas também o rabino-chefe de Roma, Riccardo Segni, médico e membro do Comitato Nazionale per la Bioética, afirmou que o mesmo princípio é partilhado pelo judaísmo[41].

A respeito dos doentes em estado vegetativo persistente, foi salientado, a propósito das polémicas em torno da morte de Eluana Englaro e desta aspecto da lei em apreço, que não se trata de doentes terminais, mas de doentes com profunda deficiência, que as hipóteses de uma mais ou menos acentuada recuperação nunca estão fechadas, e que não é seguro que não experimentem a dor (o que explica o facto de a sentença que autorizou a morte de Eluana Englaro tenha determinado a sua sedação)[42].

Alguns especialistas no tratamento destes doentes também se manifestaram contra a suspensão da alimentação e hidratação de que possam beneficiar.

O neurólogo Giulano Dolce, especialista nesta matéria, afirmou que essa suspensão provoca dores atrozes que se prolongam por vários dias, provocando uma morte muito longe de ser “digna”, sendo que ninguém quereria morrer assim se o soubesse[43]. E assim também Mário Zampolini, também especialista em estado vegetativo persistente, que se afirma de “esquerda” e não crente[44]. Também o neurólogo israelita Leon Sezban, pioneiro em estudos sobre esta doença, afirmou que se um juiz lhe mandasse suspender a alimentação e hidratação de um destes doentes com base numa declaração escrita prévia, dir-lhe-ia que o fizesse ele, juiz, porque ele, médico, nunca o faria, pois sabe das consequências dessa acto e a alimentação e hidratação são parte da dignidade devida a qualquer ser humano[45].

Para os partidários da lei em apreço a não suspensão da alimentação e hidratação dos doentes em estado vegetativo persistente é uma exigência da Convenção das Nações Unidas sobre direitos das pessoas com deficiência[46].

 

A discussão em Portugal

 

Cabe-nos, de seguida, analisar, à luz dos valores e princípios que inspiraram a lei italiana acima mencionada, os projectos de lei sobre esta matéria objecto de discussão parlamentar entre nós, quer os apresentados em legislaturas anteriores, quer os apresentados na actual legislatura, e, sobretudo, a lei que veio a ser aprovada (Lei nº 25/2012, de 16 de Julho), que resulta da confluência desses projectos, o que explica a sua aprovação por unanimidade.

 

O Partido Socialista apresentou na 11ª legislatura (a anterior) o projecto de lei nº 413/XI 2º, sobre o “direito dos doentes à informação e ao consentimento informado”, que retomava, no essencial, o conteúdo de outro projecto, apresentado na 10ª legislatura, com o nº 788/X. Na legislatura actual apresentou o projecto de lei nº 62/XII 1ª, que “estabelece o regime das directivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional de Directivas Antecipadas de Vontade” 

Na exposição de motivos destes diplomas acentuava-se a centralidade dos direitos dos doentes à sua autonomia quanto aos cuidados de saúde.

O artigo 4º do projecto de lei nº 62/XII 1ª, apresentado nesta legislatura (tal como o faziam o artigo 13º, nº 1, do projecto de Lei nº 413/XI 2º e artigo 14º, nº 1, do projecto de lei nº 788/X, apresentados nas legislaturas anteriores), estatuía, a respeito do conteúdo do testamento vital: «através do testamento vital, o declarante adulto e capaz, que se encontre em condições de plena informação e liberdade, pode determinar quais os cuidados de saúde que deseja ou não receber no futuro, incluindo os cuidados de alimentação e de hidratação, no caso de, por qualquer causa, se encontrar incapaz de prestar o consentimento informado de forma autónoma.»

Ao contrário da lei italiana, não se excluía do conteúdo das declarações antecipadas de vontade tratamentos úteis e proporcionais à salvaguarda da vida, nem a alimentação e hidratação, que são expressamente mencionadas. Também não se distinguia entre doenças terminais, ou não terminais.

A respeito do carácter vinculativo das declarações, havia diferenças sensíveis entre estes projectos.

Os projectos apresentados nas legislaturas anteriores continham preceitos que razoavelmente limitavam a eficácia vinculativa das declarações antecipadas de vontade. O artigo 13º, nº 4, do projecto de lei nº 413/XI 2ª (artigo 14º, nº 4, do projecto de lei nº 788/X) estatuía que «a declaração antecipada de vontade é tida em consideração como elemento fundamental para apurar a vontade do doente, salvo o disposto no artigo 14º» (15º do projecto de lei nº 788/X)». O nº 5 do mesmo artigo 13º (14º do projecto de lei nº 788/X) estatuía que «a eficácia vinculativa da declaração antecipada de vontade depende, designadamente, do grau de conhecimento que o outorgante tinha do seu estado de saúde, da natureza da sua doença e da sua evolução; do grau de participação de um médico na aquisição dessa informação; do rigor com que são descritos os métodos terapêuticos que se pretendem recusar ou aceitar; da data da sua redacção; e das demais circunstâncias que permitam avaliar o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade». «A decisão do médico, em conformidade ou divergência com a declaração, deve ser fundamentada e registada no processo clínico» (nº 6 dos mesmo artigos).

O artigo 14º, nº 1, do projecto de lei nº 413/XI 2ª (tal como o artigo 15º do projecto de lei nº 788/X) limitava a eficácia das declarações antecipadas de vontade nestes termos: «O médico nunca respeita a declaração antecipada quando esta seja contrária à lei ou à ordem pública, quando determine uma intervenção contrária às normas técnicas da profissão, ou quando, devido à sua evidente desactualização em face dos progressos dos meios terapêuticos, seja manifestamente presumível que o doente não desejaria manter a declaração».

O projecto de lei nº 62/XII 1ª, apresentado nesta legislatura, reforçava significativamente o carácter vinculativo do testamento vital. O seu artigo 6º, nº 1, estatuía que este será vinculativo desde que: conste de documento escrito, lavrado em condições de esclarecimento e liberdade, e a assinatura haja sido reconhecida presencialmente perante um notário ou perante um funcionário do RENDAV (Registo Nacional das Directivas Antecipadas de Vontade); o outorgante tenha apresentado ao notário ou ao funcionário do RENDAV um documento assinado pelo médico responsável pelo esclarecimento, onde se ateste que o outorgante foi cabalmente esclarecido sobre as opções e implicações das directivas que a pessoa deseja manifestar, salvo se o outorgante expressamente declarar que rejeita o referido esclarecimento; haja sido lavrado ou modificado há menos de 5 anos; identifique com rigor e precisão o tratamento ou intervenção que se deseja recusar.

Essa eficácia vinculativa era limitada pelo artigo 7º desse projecto, que estatuía: «A equipa médica não respeita a declaração de vontade constante de um testamento vital quando esta seja contrária à lei ou à ordem pública, ou quando determine uma intervenção contrária às normas técnicas da profissão. (n. 1). A directiva antecipada de vontade não é ainda respeitada quando seja manifestamente presumível que o cidadão não a desejaria manter, quando se demonstre fundamentadamente que tal declaração contraria a “história de valores” da pessoa em causa ou devido à evidente desactualização da vontade manifestada em face do progresso dos meios terapêuticos. (nº 2).

O desrespeito de um testamento vital vinculativo configurava, nos termos deste projecto (artigo 13º, nº 2), a prática de um crime previsto e punível pelo artigo 156º, nº 1, do Código Penal (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários)

 Nestes projectos (mais claramente nos apresentados nas legislaturas anteriores), estavam, pois, contempladas várias situações que, razoavelmente, podiam conduzir à limitação da eficácia vinculativa das declarações antecipadas de vontade. Mas da redacção destes preceitos resultava que a declaração só não será vinculativa se o médico alegar a verificação de alguma circunstância específica que permita suspeitar que a vontade actual do doente não seria conforme com essa declaração. A dúvida genérica a que acima me referi a propósito da lei italiana, e que não me parece possa ser superada em absoluto (razão pela qual deveriam excluir-se do âmbito de relevância das declarações antecipadas de vontade as intervenções e tratamentos necessários e proporcionais à salvaguarda da vida), independentemente do tempo decorrido, da informação do doente e da evolução da medicina, não seria suficiente para deixar de atribuir eficácia vinculativa a essas declarações.

O disposto no nº 1 do artigo 7º do projecto de lei nº 62/XII 1ª, apresentado nesta legislatura (e na primeira parte do artigo 15º do projecto de lei nº 413/XI 2º, apresentado na legislatura anterior) constituía, inegavelmente, uma barreira à eutanásia. Seria «contrária à lei» (designadamente ao disposto nos artigos 134º e 135º do Código Penal, que punem o homicídio a pedido da vítima e o auxílio ao suicídio) uma declaração antecipada no sentido da prática da eutanásia activa, ou do auxílio ao suicídio. Importa realçar este aspecto. Mas será que a omissão de tratamentos necessários e proporcionais à salvaguarda da vida não constitui uma eutanásia por omissão[47]? Não o será, inequivocamente, quando essa omissão se baseia na vontade actual do doente, que é insuperável, em face da deontologia médica, a qual não pode deixar de o encarar como sujeito, e não simples objecto, de tratamento. Mas poderá tal omissão, sem resvalarmos para a eutanásia, basear-se numa vontade presumida e não actual, de algum modo duvidosa? A lei italiana acima referida entende que não, em nome do princípio in dubio pro vita, ao contrário deste projectos.

Os projectos em questão também se afastavam deste princípio in dubio pro  vita quando, na parte final dos citados artigos 7º, n º 1, 14º, nº 1, ou 15º, fazem cessar a eficácia vinculativa da declaração antecipada de vontade quando for manifestamente presumível que o doente não desejaria manter a declaração. Em consonância com tal princípio, bastaria que fosse presumível (e não manifestamente presumível) que o doente não desejaria manter a declaração para que esta deixasse de ter eficácia vinculativa.

Em suma, parece-me que estes projectos de lei continham normas que podem servir de obstáculo à eutanásia, mas não em termos absolutos e inequívocos.

O reconhecimento (que é de aplaudir) do direito à objecção de consciência dos profissionais de saúde a propósito da eficácia das declarações antecipadas de vontade, decorrente do artigo 14º, nº 1, do projecto de lei nº 62/XII 1º, apresentado nesta legislatura (e dos artigos 17º do projecto de lei nº 413/XI 2ª e do artigo 18º do projecto de lei nº 788/X, apresentados nas legislaturas anteriores) é um sinal de que essa eficácia pode colidir com os imperativos de consciência de alguns médicos, o que não se compreenderia se estivesse em absoluto afastada a prática da eutanásia por omissão.

 

O Bloco de Esquerda apresentou na 11ª legislatura o projecto de lei nº 414/XI 2º, que «regula do direito dos cidadãos a decidir sobre a prestação futura de cuidados de saúde em caso de incapacidade de exprimir a sua vontade e cria o registo nacional do testamento vital (RENTEV)». Logo no início da actual legislatura, a 12ª, apresentou o projecto de Lei nº 21/XII/1ª, que retoma, no essencial, o conteúdo do anterior.

Na exposição de motivos de ambos os diplomas também se acentuava a centralidade dos princípios da autonomia e da auto-determinação quanto aos cuidados de saúde.

Quanto à definição do conteúdo das declarações antecipadas de vontade e aos limites à sua eficácia, estes projectos não se distinguiam, no essencial dos do PS e contra eles valem as objecções acima indicadas

O artigo 3º de ambos os projectos também não excluía das declarações antecipadas de vontade tratamentos úteis e necessários e proporcionais à salvaguarda da vida, nem distinguia entre doenças terminais ou não terminais. O artigo 6º de ambos os projectos estatuía que «é juridicamente inexistente, não produzindo qualquer efeito jurídico, o Testamento Vital contrário à legislação portuguesa ou que não corresponda às circunstâncias de facto que o outorgante previu no momento da sua assinatura». O artigo 7º, nº 2, de ambos os projectos estatuía que «o médico responsável e os restantes membros da equipa que prestam cuidados de saúde ao outorgante do Testamento Vital respeitam integralmente as instruções nele contidas, dentro dos limites estabelecidos na presente lei, exceptuando os casos em que seja evidente a sua desactualização face ao estado da ciência no momento em que o outorgante venha a encontrar-se incapaz de expressar a sua vontade».

Também se consagrava o direito à objecção de consciência no artigo 11º de ambos os projectos.

Há, porém, um aspecto que torna mais grave, na perspectiva que venho defendendo, estes projectos, na medida em que é mais nítido o perigo de resvalar no sentido da admissibilidade da eutanásia.

Afirmava-se na exposição de motivos de ambos os projectos que o “testamento vital” deve ir de encontro à situação de muitas pessoas que «recusam o prolongamento de uma vida sem mobilidade, sem autonomia, sem relação ou comunicação com os outros, uma vida afastada dos padrões e critérios de qualidade e dignidade pessoal pelos quais se conduziram toda a vida, uma vida que recusariam prolongar se tivessem capacidade para fazer ouvir e respeitar a sua vontade.» Pretendia-se, pois, dar cobertura legal explícita à mentalidade subjacente à legalização da eutanásia quanto à desvalorização da vida quando ela perde “qualidade”. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade intrínseca e imperdível e passa a ser graduada de acordo com critérios de “qualidade”. Reconhece-se que há vidas “indignas de ser vividas” e “sem valor”. De modo especial, desvaloriza-se a vida dependente (a que pode representar um “fardo” para os outros). Trata-se de veicular uma mensagem cultural de desvalorização da vida limitada pela doença e pela deficiência que não deixa de ter graves consequência sociais. Corre-se o risco de desistir de combater o sofrimento das pessoas doentes e deficientes para as ajudar a morrer, com o que também a sociedade se livra de um pretenso “peso”. Quem possa sentir-se esse “peso” para os outros, a família e a sociedade, vê confirmada essa sua sensação, quando ela devia, antes, ser contrariada, com a afirmação do valor da vida em qualquer circunstância. Um risco que também foi salientado pelos partidários da recente lei italiana, como vimos. 

Ao primeiro desses projectos, apresentado na legislatura anterior, eram juntos modelos legais de “testamento vital” que concretizam essa mentalidade e especificam as situações em que vida pode perder “dignidade”. Contemplava-se a hipótese de «doenças graves e irreversíveis que afectem a autonomia, a capacidade de comunicação e a qualidade de vida», sem as restringir a doenças terminais e sem limitar o grau em que essas capacidades são afectadas. Contemplavam-se situações de ausência de «expectativas de tratamento e recuperação sem sequelas que impeçam uma vida autónoma e a capacidade de relação e comunicação com os outros». Contemplavam-se situações de recusa de amputação de membros (excepto dedos), ainda que necessária à sobrevivência. Pode dar-se, assim, cobertura a intenções que até se situarão fora do âmbito da mentalidade subjacente à eutanásia, situando-se no âmbito da pura e simples vontade suicida.

O projecto de lei apresentado na actual legislatura (nº 21/XII 1ª) já não continha em anexo algum modelo de “testamento vital”, estatuindo que tal modelo seria definido pelo Ministério da Saúde (artigo 5º, nº 5). Nos termos do artigo 18º deste projecto, os estabelecimentos de saúde, públicos e privados, seriam obrigados a disponibilizar, em locais de fácil acesso e consulta pelos utentes, informação sobre o “testamento vital” e sobre o procedimento para a sua formalização, assim como tal modelo em suporte de papel pré-impresso.

Atendendo aos princípios subjacentes à exposição de motivos deste projecto, não deixa de ser justificado o receio de definição do modelo de “testamento vital” em termos semelhantes aos que constavam do modelo anexo ao projecto apresentado na legislatura anterior. E de que a difusão em termos amplos desse modelo, como pretendia o projecto ora apresentado, pudesse ser interpretada como um convite e um estímulo à elaboração de “testamentos vitais” que contemplem, precisamente, a recusa de tratamentos necessários e proporcionais à salvaguarda da vida de pessoas com alguma deficiência, vida que possa acarretar particulares encargos para a família e a sociedade. O “testamento vital” seria um fácil pretexto para evitar tais encargos.

 

O PSD apresentou na legislatura anterior o projecto de lei nº 428/XI, sobre “directivas antecipadas de vontade”. Na actual legislatura apresentou o projecto de lei nº 63/XI, que “regula o regime das directivas antecipadas de vontade”.

Na exposição de motivos destes projectos de lei também se acentuava o princípio da autonomia do doente. Mas aí se afirmava que tais declarações de dirigem «fundamentalmente, a situações de doença terminal».

Na exposição de motivos do projecto de lei nº 428/XI, apresentado na legislatura anterior, afirmava-se que o projecto pretendia «no essencial, fixar o seu objecto naquilo que é hoje designado como “excesso terapêutico”», o qual de traduz «em tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados», e que recusar o “excesso terapêutico não significa que «se pretenda dar a morte», mas «aceitar o facto de não a poder impedir». Este tipo de afirmações já não constava, porém, da exposição de motivos do projecto de lei nº 63/XII, apresentado nesta legislatura.

Estatuia o artigo 5º de ambos os projectos, quanto ao conteúdo das “directivas antecipadas de vontade”:

«1. Podem constar do documento de directivas antecipadas de vontade disposições que expressem a vontade do outorgante, de, caso se encontre em estado permanente de inconsciência, designadamente:

a)      Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental;

b)      Não ser submetido a tratamento de suporte das funções vitais se este ofender a sua liberdade de consciência, de religião ou de culto;

c)      Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado, que apenas vise retardar o processo natural de morte;

d)     Receber todos os cuidados de saúde que segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina se mostrem indicados para minorar a doença de que sofre ou de que pode vir a sofrer;

e)      Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma terapêutica analgésica adequada.

2. Podem ainda constar do documento de directivas antecipadas de vontade disposições que expressem a vontade do outorgante de não receber informação sobre o seu estado de saúde em caso de prognóstico fatal.»

Estatuía, por seu turno, o artigo 6º de ambos os projectos, quanto aos limites das “directivas antecipadas de vontade”:

«1. São juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito jurídico, as directivas antecipadas de vontade:

a)      Que sejam contrárias à lei ou às leges artis;

b)      Cujo cumprimento possa implicar a morte no caso de a pessoa não sofrer de doença terminal;

c)      Que não correspondam às circunstâncias de facto que o outorgante previu no momento da sua assinatura.»

Estes projectos já se aproximavam mais da lei italiana que começámos por analisar e contra ele não procederão as objecções acima apontadas aos projectos anteriormente analisados.

A exclusão da eficácia das “declarações antecipadas de vontade” quando destas possa resultar a morte de uma pessoa que não sofra de doença terminal (artigo 6º, nº 1, b)) afasta claramente do seu âmbito, ao contrário do que se verifica com os projectos anteriormente analisados, intenções puramente suicidárias ou de recusa da vida com deficiência.

Embora não decorresse inequivocamente (pois o uso da expressão “designadamente” significa que não estamos perante um elenco de situações taxativo) do citado artigo 5º que o conteúdo dessas declarações não pode abranger a recusa de tratamentos úteis, necessários e proporcionados à salvaguarda da vida, podia entender-se que tal seria a mais razoável interpretação deste preceito. E é assim porque se fosse outra a intenção do legislador certamente tal situação (pelo particular relevo que tem) constaria do elenco das situações expressamente previstas; porque as situações não expressamente previstas devem ter alguma equiparação (e não é esse o caso) às que são expressamente previstas (estamos perante a técnica legislativa chamada dos exemplos padrão); e porque é o que resulta a contrario sensu da previsão da recusa de tratamentos fúteis, inúteis ou desproporcionados (a contrario sensu, estará excluída a recusa de tratamentos úteis, necessários e proporcionados). Essa interpretação também se coadunaria mais com a exposição de motivos do projecto de lei nº 428/XI, apresentado na legislatura anterior, onde se afirmava, como vimos, que o projecto se centra na recusa do “excesso terapêutico”, sendo que, porém, esta referência já não constava da exposição de motivos do projecto de lei nº 63/XII, apresentado nesta legislatura.

       

 O CDS/PP apresentou na legislatura anterior o projecto de lei nº 429/XI/2ª, que «regula as Directivas Antecipadas de Vontade em matéria do Testamento Vital e nomeação de Procurador de Cuidados de Saúde e procede à criação do Registo Nacional do Testamento Vital». Com a mesma designação, apresentou na actual legislatura o projecto de lei nº 64/XII.

Na exposição de motivos destes projectos também se sublinhava o relevo da autonomia da pessoa doente, mas não deixava de se sublinhar que este valor tem de ser articulado com o da inviolabilidade da vida humana. Aí se afirmava:

«(…) Nesta linha, o respeito pela inviolabilidade da vida humana da pessoa doente, pela sua dignidade e autonomia, são princípios e valores que enquadram a matéria que este diploma aborda, não na lógica de que existe uma hierarquia de direitos das pessoas mas antes uma harmonização no exercício dos mesmos, de modo a que a defesa do exercício da autonomia individual não colida com a responsabilidade por si e pelos outros. Do mesmo modo, importa aqui clarificar que entendemos a dignidade como um importante valor inerente e intrínseco à condição humana, do qual decorre depois o dever de respeitar essas mesmas pessoas, nomeadamente no que concerne ao seu direito à autonomia. Apesar da vastidão do conceito, realçamos que a dignidade contempla mas não se esgota no direito à autonomia.»

Quanto ao conteúdo e limites do “testamento vital”, estatuía o artigo 4º de ambos os projectos:

«1. Podem constar no testamento vital e da procuração de cuidados de saúde disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante em:

a) receber todos os cuidados de saúde que, segundo o estado actualizado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrem indicados para minorar a doença de que sofre ou de que pode vir a sofrer;

b) receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada;

2.Podem constar do testamento vital e da procuração de cuidados de saúde disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante em:

a) não ser submetido a tratamento considerado fútil e desproporcionado no seu contexto clínico e de acordo com as boas práticas médicas, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte básico de vida e às medidas de  alimentação e hidratação artificiais;

b) não receber informação sobre o seu estado de saúde em caso de prognóstico fatal;

3.São juridicamente inexistentes e não produzem qualquer efeito jurídico as disposições do testamento vital e procuração contrárias à lei, às leges artis, ou que não correspondam às circunstâncias de facto que o outorgante previu no momento da sua assinatura.»

Também este projecto se aproximava mais da lei italiana acima comentada. O conteúdo do “testamento vital” estava definido no citado artigo 4º, que integrava um elenco (aparentemente taxativo) de situações onde se incluía a recusa de um «tratamento considerado fútil e desproporcionado no seu contexto clínico e de acordo com as boas práticas médicas», mas não a recusa de tratamentos que, pelo contrário, sejam necessários, úteis e proporcionados à salvaguarda da vida.

Deve, porém, reconhecer-se que a referência à alimentação e hidratação artificiais podia dar origem a algum equívoco. A mais correcta interpretação levaria a considerar que a recusa de alimentação e hidratação artificiais que podem constar do “testamento vital” seriam as que não são (ou deixam de ser) úteis, por não atingirem o seu objectivo, na linha do que também estipula a lei italiana acima analisada. Outra interpretação seria contraditória com o teor integral do preceito em causa (que fala em «tratamento considerado fútil e desproporcionado (…), nomeadamente no que concerne (…) às medidas de alimentação e hidratação artificiais». O equívoco podia, porém, surgir, porque não é esse a regra quanto à alimentação e hidratação, mesmo artificiais, que, como vimos, nem sequer poderão ser consideradas um “tratamento” ou uma “terapia”.

 

Apesar das diferenças significativas entre estes projectos, a lei que veio posteriormente a ser aprovada em resultado da discussão parlamentar (a Lei nº 25/2012, de 16 de Julho, que «regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV)», foi-o por unanimidade.

De mais relevante, na perspectiva das questões acima analisadas, há que destacar, do conteúdo da lei, o seguinte.

Estatui o artigo 2º, sobre a definição e conteúdo do documento:

«1 — As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.

2 — Podem constar do documento de diretivas antecipadas de vontade as disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, nomeadamente:

a) Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais;

b) Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico e de acordo com as boas práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte;

c) Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase

avançada, incluindo uma terapêutica sintomática apropriada;

d) Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental;

e) Autorizar ou recusar a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos.»

A alusão à recusa de “tratamento de suporte artificial de funções vitais” não constava dos projectos apresentados pelo PSD e pelo CDS-PP. Tal tipo de tratamento pode configurar excesso terapêutico, ou não; também pode ser necessário e justificado na perspectiva da salvaguarda da vida, apesar do seu carácter “artificial”. Pode, pois, suscitar-se, a este respeito, uma objecção à luz da necessidade da salvaguarda da vida em face de uma declaração de vontade não actual e, por isso, não absolutamente inequívoca.

Quanto à recusa de tratamento “fútil, inútil ou desproporcionado”, nada haverá a objectar. A alusão às medidas de “alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte”, que constava do projecto do CDS-PP, impõe um esclarecimento na linha do que já acima referi.

Em regra, a alimentação e hidratação artificiais não configuram um “tratamento fútil, inútil e desproporcionado”. Não visam “retardar o processo natural da morte” quando com elas se pretende evitar a morte não devida à doença em causa, mas por inanição e desidratação. A morte por inanição e desidratação nunca configura “um processo natural de morte”[48]. Quando a uma pessoa em estado vegetativo persistente se ministra alimentação e hidratação artificiais (como no caso de Eluana Englaro) não se está a “retardar o processo natural da morte” (não se trata de um doente terminal, mas de um doente que padece de grave e extrema deficiência).

As situações contempladas nas alíneas c), d) e e) também não suscitam objecções.

Da enumeração de todas essas situações pode concluir-se, a contrario sensu, que não deverão ser atendíveis directivas antecipadas de vontade de recusa de tratamentos não artificiais de suporte vital que sejam úteis, justificados e proporcionados, ou a recusa de alimentação e hidratação artificiais que não visem retardar o processo natural da morte. É certo que essa enumeração não é taxativa (usa-se a expressão “nomeadamente”). Mas as situações nela não contempladas hão-de ter alguma analogia com as que nela estão expressamente contempladas (segundo a técnica dos exemplos padrão, a que já me referi) e isso não se verificará nessas situações, que representam o exacto contrário do que é expressamente indicado na enumeração.

Quanto aos limites das directivas antecipadas de vontade, estatui o artigo 5º:

«São juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito, as diretivas antecipadas de vontade:

a) Que sejam contrárias à lei, à ordem pública ou determinem uma atuação contrária às boas práticas;

 b) Cujo cumprimento possa provocar deliberadamente a morte não natural e evitável, tal como prevista nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal;

c) Em que o outorgante não tenha expressado, clara e inequivocamente, a sua vontade.»

Seria contrária à “lei” uma directiva antecipada de vontade cujo cumprimento configure a prática de eutanásia activa voluntária, a qual se traduz penalmente num crime de homicídio a pedido da vítima (previsto no artigo 134º do Código Penal), ou o auxílio activo ao suicídio (previsto como crime no artigo 135º do mesmo Código). Mais explicitamente, a alínea b) deste artigo (cujo conteúdo não constava dos projectos) afirma isso mesmo, aludindo à provocação da “morte não natural e evitável” e a esses artigos do Código Penal. Esta alusão merece alguma atenção e aprofundamento.

Desta referência, também em conjugação com a redacção da citada alínea b) do artigo 2º, pode concluir-se que, de acordo com o espírito da lei, às directivas antecipadas de vontade deve ser dado relevo na perspectiva da aceitação do processo natural da morte, e não na perspectiva da provocação de uma morte não natural e evitável (uma coisa é aceitar a morte, outra provocar a morte)[49].

Pode questionar-se se desta alínea b) do artigo 5º também resulta que o conteúdo das directivas antecipadas de vontade não abrange a eutanásia por omissão, isto é, a provocação de uma morte não natural e evitável por omissão de tratamentos úteis e justificados na perspectiva da salvaguarda da vida. Isso dependerá da questão de saber se o crime de homicídio a pedido da vítima pode ser praticado por omissão. O artigo 10º, nº 1, do Código Penal equipara a acção à omissão («Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se for outra a intenção da lei»). Mas a punição da omissão supõe, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, que sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado (a chamada posição de garante). O médico tem, em geral, esse dever, salvo se a pessoa carecida da sua intervenção manifestar uma vontade contrária a essa intervenção. A vontade actual não suscita dúvidas. Já o suscitará uma vontade não actual, designadamente a que se exprime num “testamento vital”. A alínea em questão servirá para não dar relevo a essa vontade quando esteja em causa uma “morte não natural e evitável”?

Poder-se-á dizer que a exclusão da eutanásia activa já decorreria da própria definição de “directiva antecipada de vontade” que consta do citado nº 1 do artigo 2º (que é relativa à decisão sobre “cuidados de saúde” a receber ou não receber, e não à prática de actos que possam provocar activamente a morte). A citada disposição da alínea b) do artigo 5º poderá não ter sentido útil (ou ter esse sentido muito reduzido) se não se traduzir na recusa da eutanásia por omissão (a qual pode resultar da omissão de cuidados de saúde necessários na perspectiva da salvaguarda da vida e poderia, por isso, resultar do cumprimento de uma directiva antecipada de vontade).

Da redacção da lei aprovada não consta, como constava do projecto apresentado pelo PSD, a exclusão de doenças não terminais do âmbito de relevância das directivas antecipadas de vontade. Tal permitiria excluir desse âmbito a vontade (suicidária) de rejeição da vida em condições de mais ou menos grave limitação ou deficiência (ou de suposta menor “qualidade de vida”). É de lamentar, à luz dos princípios a que venho defendendo, que esta exclusão não conste da lei aprovada. Mas impõe-se reconhecer que, atendendo ao que resulta das referidas alíneas b) do artigo 2º e b) do artigo 5º, não estamos, nesses casos, perante uma aceitação de uma “morte natural”, mas da provocação de uma “morte não natural e evitável”. Poderá, por isso, e por força destes dois preceitos, considerar-se que estas situações estarão excluídas do âmbito das declarações antecipadas de vontade.             

Quanto à eficácia destas declarações, estatui o nº 2 do artigo 6º:

«2 As diretivas antecipadas de vontade não devem ser respeitadas quando:

a) Se comprove que o outorgante não desejaria mantê-las;

 b) Se verifique evidente desatualização da vontade do outorgante face ao progresso dos meios terapêuticos, entretanto verificado;

c) Não correspondam às circunstâncias de facto que o outorgante previu no momento da sua assinatura.»

Não se exige, pois, como o fazia o projecto apresentado pelo PS, que a possibilidade de divergência entre o conteúdo da directiva antecipada de vontade e a hipotética vontade actual do outorgante seja “manifestamente presumível” (o que poderia ser considerado demasiado exigente à luz do princípio in dubio pro vitae), mas apenas que se comprove essa possibilidade. 

            Manifestação desse princípio in dubio pro vitae é o que dispõe o nº 4 desse artigo 2º:

            «4 — Em caso de urgência ou de perigo imediato para a vida do paciente, a equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o dever de ter em consideração as diretivas antecipadas de vontade, no caso de o acesso às mesmas poder implicar uma demora que agrave, previsivelmente, os riscos para a vida ou a saúde do outorgante.»

            O artigo 9º da consagra o direito à objecção de consciência, na linha do que faziam todos os projectos apresentados.

 

Do confronto entre a forma como a discussão desta questão ocorreu em Itália e em Portugal não pode deixar de se notar o grande contraste entre a forma tão viva e polémica da discussão em Itália e a discussão aparentemente consensual que deu origem à aprovação por unanimidade da lei portuguesa. Esse contraste poderá causar alguma perplexidade: será que o que dividiu os deputados italianos (que tem a ver, sobretudo, com a questão do relevo de declarações antecipadas de vontade de recusa de tratamentos úteis e proporcionados à salvaguarda da vida) não divide os deputados portugueses, ou será que as razões dessa divisão foram ocultadas ou minimizadas? Penso que a divisão em causa há-de reflectir-se na interpretação da lei aprovada. Algumas das interpretações que acima proponho não serão certamente consensuais. Mas, em meu entender, delas dependerá saber se a regulação do “testamento vital” se traduzirá num primeiro passo em direcção à legalização da eutanásia (como pretenderão alguns dos deputados que aprovaram a lei), ou, pelo contrário, num obstáculo nessa direcção (como certamente também pretenderão outros dos deputados que aprovaram essa lei).  

                                                            Pedro Vaz Patto


[1] Liberal, 14/7/2011.
[2] Avvenire, 23/3/2011.
[3] Avvenire, 11/3/2011.
[4] Il Messagero, 7/3/2011.
[5] Avvenire, 26/3/2011.
[6] Avvenire, 12/3/2011.
[7] Avvenire, suplemento È Vita, 7/7/2011.
[8] Zenit, ed. em italiano, 13/7/2011
[9] Avvenire, 1/7/2011.
[10] L a Republica, 7/7/2011.
Francesco d´Agostino, presidente da União dos Juristas Católicos Italianos, e presidente honorário do Comitato Nazionale per  la Bioetica respondeu a estas violentas críticas no jornal Avvenire de 8/7/2011.
[11] Pode ver-se a análise desta questão em Avvenire, suplemento È Vita, 14/7/2011.
[12] Avvenire, 13/7/2011.
[13] «Testamentos de vida e de morte», in Publico, 25/10/2010.
[14] «L´invettiva e la ragione», in Avvenire, 8/7/2011, e «La vittoria di Ippocrate», in Avvenire, 15/7/2011..
[15] «Contro il far-west», in Liberal, 9/3/2011.
[16] «Sono del tutto laici i motivi per dire sì alla legge sulle “Dat”», in Avvenire, 9/3/2011.
[17] «Storia di Ruud, che voleva morire e fatto fragile chiese di restare vivo», in Avvenire, 13/7/2010.
[18] Significativo, ainda, o caso da inglesa Nikki Kenward, que, depois de ter estado cinco meses completamente paralisada (à excepção do olho) por efeito do sindroma de Guillain-Barre, afirma que, apesar de todo o sofrimento e contra tudo o que muitas pessoas poderão imaginar se colocadas perante esse drama, nessa situação pretendia viver. Essa experiência fá-la militar hoje contra a eutanásia e a suspensão da alimentação e hidratação artificiais de doentes em estado vegetativo persistente (in Mail on line, 15/7/2010).  
[19] «Quanta distanza tra “bio-testamemnto” e “dchiarazioni antecipate”, in Avvenire, 25/2/2011, e «Basta equivoci: “sí” alla legge», in Avvenire, 3/3/2011.
[20] Eluana è tutti noi – perché una una legge e perché no al “testamento biológico”, Società Editrice Fiorentina, Florença, 2008, pg. 12.
[21] «Concretezza della liberta – Ideologia della autodeterminazione», in Avvenire, 10/7/2011.
[22] Avvenire, suplemento È Vita, 31/3/2011.
[23] Il valore della vita», in Liberal, 27/4/2011, e «Ai confini della vita, dalla parte dell´uomo», in Liberal, 14/7/2011.
Sobre toda a questão do caso Eluana Englaro e da lei em apreço, pode ver-se, Paola Binetti,  La vita è uguale per tutti – La legge italiana e la dignità della persona, Mondadori, Milão, 2009.
[24] Afirma, nesta linha, a declaração da Conferência Episcopal norte-americana sobre suicido assistido, de 16/6/2011(http://www.usccb.org/toliveeachday/bishops-statement-physician-assisted-suicide.pdf) que não é por acaso que os founding fathers fizeram anteceder, na Constituição norte-americana, os direitos à liberdade e à busca da felicidade do direito à vida.  
[25] Afirmam, também nesta linha, Carlo Casini, Marina Casini e Maria Luisa di Pietro (op.cit., pg. 145):
«Não pode dizer-se que a última expressão da liberdade é a escolha da morte, porque uma vez actuada esta decisão não pode voltar-se atrás. Elemento essencial da liberdade – salvaguardada a responsabilidade para com terceiros – é a revogabilidade. Uma escolha de perda irrevogável da liberdade não é expressão da liberdade.
Há um nexo misterioso entre vida e liberdade.
Na ordem da vida física a morte é exactamente o oposto da liberdade, é o seu fim.
Quem salva uma pessoa de uma tentativa de suicídio, não lhe salva apenas a vida, restitui-lhe a liberdade.»
[26] «Dat, perché queste regole – dici dubbi e dieci risposte», Avvenire, suplemento È Vita, 3/3/2011. 
[27] «Diritto di morire: pericolo per chi è più debole», in Avvenire, suplemento È Vita, 24/2/2011.
[28] Op. e loc. cit..
[29] Op. e loc. cit.. Também salientam esta aspecto Rocco Buttiglione e Cesare Mirabelli, op. e loc. cit., assom como Carlo Casini, Marina Casini e Maria Luisa di Pietro, op.cit., pg. 129..
[30] Assim, Rocco Buttiglione, op. cit..
[31] Op, e loc. cit..
[32] «Dal caso Englaro alle dechiarazioni antecipate di tratamento» (II), Zenit, ed. em italiano, 31/5/2009.
Afirmam, também neste sentido, Carlo Casini, Marina Casini e Maria Luisa di Pietro (op.cit., pg. 199):
«…o conceito de encarniçamento terapêutico é complexo. A proporcionalidade dos tratamentos não depende apenas da avaliação abstracta dos benefícios ou da futilidade das hipotéticas terapias. Depende também da situação concreta do paciente, a qual é condicionada também por circunstâncias não sanitárias. Por isso, nessa avaliação entram seguramente também as propensões do doente. As incomodidades a enfrentar em caso de uma possibilidade de tratamento, em relação a outra, dependem também do modo subjectivo como são sentidas pelo doentes e das possibilidades materiais de as superar.»
[33] Avvenire, 19/3/2011 e 15/7/2011.
[34] Significativo o que afirma, a este respeito, Carlo Casini, Marina Casini e Maria Luisa di Pietro (op.cit., pg. 62):
«Vêm à mente os milhares de mães, irmãos e familiares que, desde há anos, continuam a assistir uma pessoa querida que se encontra nas mesmas condições de Eluana. Muitas famílias mudaram a sua vida por isto, mudaram de trabalho, de férias, de casa.  Muitas tornaram-se pobres para prestar assistência ao filho, à mulher, ao marido que não fala, não caminha, que apenas parece, de vez em quando, estranhamente, sorrir. Agradece? Conhecemos alguns destes casos. O que pensarão estes milhares de mães ao ouvir na televisão que Eluana deve morrer? Que é isso que está certo? São eles que estão errados? O seu sacrifício è inútil? Fizeram mal a si mesmos, aos filhos, à sua família? Se a história de Eluana terminar com a morte decidida pela sociedade, mudarão também eles de ideias, reconhecerão entre lágrimas o seu erro? Queriam fazer bem ao seu filho e acabaram por fazer com que sofresse mais? Dedicaram tempo, sono, dinheiro a um cadáver?
E no entanto… Não há ninguém que não admire, que não louve estas mães, estes pais, este cônjuge, que não se comova ao escutar o seu testemunho.»
[35] Assim, entre outros, Paola Binetti e Rocco Buttiglione, op. e loc. cit..
[36] Assim, entre outros, Lúcio Romano, «Dal caso Englaro alle dechiarazioni antecipate di tratamento» (I), zenit, ed. em italiano, 24/5/2009.
[37]http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2004/march/documents/hf_jp-ii_spe_20040320_congress-fiamc_po.html
[38]http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20070801_risposte-usa_po.html
[39] Tradução portuguesa, ed. Paulinas, Lisboa, 1995, n. 120, pg. 100.
[40] Pode ver-se, ainda neste sentido, o parecer do grupo de reflexão bioética da Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia, Science & Éthique, vol. 2, Récueil des avis élaborés par le groupe de réflexion bioéthique,pgs. 33 a 50, acessível, em Julho de 2012, em www.comece.org
[41] Avvenire, 27/7/2011.
[42] Assim, por exemplo; Lúcio Romano, «Dal caso …» (I), cit..; Paola Binetti, «Caro Umberto, la vera libertà è scegliere», in Liberal, 6/5/2011; Massimo Gandolfini, «Buona Scienza e Scienza Buona», in Biofiles (publicação da associação Scienza e Vita) , nº 2, 26/4/2011..
[43] Avvenire, 16/3/2011.
[44] Avvenire, 29/3/2001..
[45] Avvenire, 8/7/2010.
[46] Assim, por exemplo, Lúcio Romano in Avvenire, suplemento È Vita, 26/4/2011.
[47] Na definição da carta encíclica de João Paulo II Evangelium Vitae, por «eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte como o objectivo de eliminar o sofrimento» (n. 65).
[48] Vem a propósito referir uma notícia recente que dá conta da oposição de vários médicos britânicos a um programa (Liverpool Care Pathway) que prevê a suspensão de alimentação e hidratação de doentes terminais. Criticam esses médicos o facto de essa suspensão, alegadamente motivada pela necessidade de redução de despesas públicas e de libertação de camas ocupadas, provocar uma lenta agonia particularmente dolorosa, por privação de substâncias nutrientes e hidratantes, muito longe de uma morte “natural” ou “digna” (ver Avvenire, 12/7/2012).   
[49] É certamente por isso que partidários da legalização da eutanásia criticaram esta alusão da lei à “morte natural” (ver Laura Ferreira dos Santos e João Carlos Macedo, «Desvitalidades do Testamento aprovado», in Público, 2/7/2012 )

Sem comentários: