A questão da
regulação legal do chamado “testamento vital” está entre nós na ordem do dia.
Depois de na 11ª legislatura terem sido apresentados quatro projectos de Lei e
de a dissolução da Assembleia da República ter interrompido o processo
legislativo a tal relativo, voltaram a ser apresentados projectos nesta
legislatura e o processo teve o seu desfecho com a aprovação e publicação da
Lei .
Em Itália, a
questão também tem sido objecto de discussão, particularmente viva. A Câmara
dos Deputados aprovou uma lei contendo “disposições em matéria de aliança
terapêutica, consentimento informado e declarações antecipadas de vontade”,
sendo que, porem, no momento em que escrevo (Julho de 2012), o processo
legislativo ainda não teve o seu desfecho, pois se aguarda a discussão da mesma
no Senado.
Parece-me do maior interesse a análise da
argumentação subjacente ao conteúdo desta lei italiana, confrontando-a com os
vários projectos discutidos e a lei que veio a ser aprovada entre nós.
A discussão em Itália
Na verdade, a
lei italiana, constitui, na expressão da neurologista e deputada Paola Binetti,
«uma das leis que mais apaixonou a opinião pública nos últimos cinco anos»
. Em
favor da sua aprovação empenharam-se afincadamente os principais movimentos
católicos e os representantes da hierarquia eclesiástica. O cardeal Bagnasco,
presidente da Conferência Episcopal Italiana, considerou-a “necessária e
urgente” numa sua comunicação à assembleia-geral dessa Conferência
.
Nesse sentido também se pronunciaram o cardeal Elio Sgreccia, presidente
emérito da Academia Pontifícia pela Vida
e
Mons. Ignacio Carrasco de Paola, actual presidente dessa Academia
.
Foram lançados um manifesto de 23 associações católicas
e um
apelo ao Parlamento subscrito por intelectuais, universitários e responsáveis
da comunicação social dessa área
,
ambos em favor dos princípios que vieram a ser consagrados nessa lei. Também
nesse sentido se pronunciou a associação dos médicos católicos italianos
. A
aprovação da lei foi aplaudida pelas associações
Movimento per la Vita,
Forum
delle Associazioni Famiglari e
Scienza
e Vita.
Os princípios
consagrados na lei, que justificam este apoio, resultam da rejeição firme da
eutanásia activa ou passiva e do respeito pela indisponibilidade da vida
humana, ao mesmo tempo que se rejeita a
exacerbação
terapêutica (
obstinação, excesso ou
encarniçamento terapêuticos). Como
pano de fundo da discussão, não pode ignorar-se o episódio da morte de Eluana
Englaro, uma jovem em estado vegetativo persistente, privada, por decisão
judicial na sequência de decisões contrárias anteriores, da alimentação e
hidratação que a mantinham em vida desde há vários anos. Evitar a repetição de
mortes como essa (então objecto de acesa discussão) com autorização judicial e
sem apoio legal, foi objectivo da lei, até então não considerada necessária por
vários dos seus actuais apoiantes. Uma decisão análoga do Tribunal Federal
alemão, recente e inovadora (que absolveu um advogado que aconselhou a filha de
uma doente em estado vegetativo persistente a fazer cessar a sua alimentação e
hidratação)
, também não deixou de
servir de motivo para o conteúdo da lei aprovada.
O campo
oposto, dos adversários da lei, também se moveu com grande empenho. A razão
principal da crítica diz respeito à irrelevância da vontade não actual do
subscritor de uma declaração antecipada de tratamento no sentido da rejeição de
tratamentos necessários à salvaguarda da vida. Considera-se tal irrelevância contrária
ao necessário respeito pela autonomia individual. Um dos principais expoentes
dessa oposição, o jurista Stefano Rodotà, chegou a qualificar a lei como
“quinta essência do despotismo ético» e expressão de um “fundamentalismo
católico incompreensível”
.
Esta crítica encontrou grande eco na imprensa laica
.
Anunciam-se recursos de inconstitucionalidade e propostas de referendo de
iniciativa popular tendente à revogação da lei.
A lei foi
aprovada na Câmara dos Deputados com uma maioria de 278 votos a favor, 205
contra e 7 abstenções. Votaram a favor a grande maioria dos partidos que apoiavam
o governo de centro-direita (
Pdl e
Lega Nord), deputados da oposição de
centro (os democratas cristãos da
Udc)
e cerca de cinquenta deputados do
Pd,
principal partido da oposição de centro-esquerda (que assumiu, porém, uma posição
oficial de oposição clara à lei). A transversalidade da aprovação da lei foi,
assim, mais acentuada do que se previa inicialmente
. Como
já referi, no momento em que escrevo (Julho de 2012) aguarda-se ainda a votação
no Senado, condição de aprovação definitiva.
Do conteúdo da
lei, há que destacar a rejeição da eutanásia e da exacerbação terapêutica; o princípio do consentimento informado
actual e consciente como condição de um tratamento, a consagração do princípio
da aliança terapêutica como linha
inspiradora da relação médico-doente (contrário a uma visão paternalista do
médico alheio à vontade do doente, mas também a uma visão daquele como simples
executor da vontade deste fora do quadro da sua deontologia); a consagração do
carácter não vinculativo das declarações antecipadas de tratamento (expressão
intencionalmente adoptada por oposição à de “testamento vital” ou “testamento
biológico”); e a relevância dessas declarações quanto à rejeição de tratamentos
desproporcionados ou experimentais, mas não quanto a tratamentos úteis e
proporcionais na perspectiva da salvaguarda da vida. Em particular, estatui-se
que não é relevante uma declaração antecipada de tratamento de rejeição da
alimentação e hidratação, ainda que por meios artificiais, salvo se estas se
tornarem ineficazes face à capacidade de absorção do corpo (situação que já
configurará um procedimento inútil ou desproporcionado). A lei pretende, deste
modo, garantir a assistência, e o não abandono, aos doentes em estado
vegetativo persistente, evitando a repetição de casos como o da morte de Eluana
Englaro.
Foi este
aspecto (a irrelevância das declarações antecipadas de tratamento no que se
refere a tratamentos úteis e proporcionais à salvaguarda da vida e à rejeição
da alimentação e hidratação artificiais) que motivou as maiores críticas à lei.
Em favor deste
aspecto do regime legal aprovado, foram esgrimidos argumentos fundados num
princípio de favor vitae, que não se
confundem com razões confessionais especificamente católicas (apesar das
aparências que possam decorrer do contexto da discussão da lei acima descrito).
Esses
argumentos partem da necessidade da distinção entre um consentimento actual e
consciente (que será sempre necessário) e um consentimento presumido ou
hipotético, ainda que baseado numa declaração escrita anterior. Porque esta é
elaborada num contexto muito diferente daquele em que se decide sobre o
tratamento em questão, nunca é de excluir a possibilidade de mudança de
perspectivas na iminência da morte. Nestes casos, a dúvida impõe uma decisão a
favor da vida, pois estamos perante a mais irreversível das decisões. Já o
afirmei em escritos anteriores:
« (…) Dir-se-á
que há que respeitar o princípio da autonomia, evitar tratamentos forçados,
respeitar uma vontade do doente previamente formulada quando este não a pode
manifestar actualmente por estar inconsciente (a sua incapacidade não o faz
perder direitos – argumenta-se). Mas é diferente o respeito por uma vontade actual e esclarecida (que não suscita dúvidas
sobre o seu sentido autêntico) e o respeito por uma vontade hipotética, com
base em declarações prestadas anteriormente num contexto muito diferente do
actual (de forma necessariamente pouco esclarecida, precisamente por esse
contexto ser diferente do actual). Não se trata apenas de considerar a dúvida
sobre a informação a que possa ter tido acesso a pessoa quando formulou essa
declaração, ou sobre se a situação em que se encontra agora era, para ela,
nessa altura, previsível. Nem também a possibilidade de o estado dos
conhecimentos médicos se ter alterado desde então. É que subsiste sempre a
dúvida (independentemente do tempo decorrido e da possibilidade de revogação da
declaração) a respeito de saber se a pessoa não poderia mudar de opinião.
É sabido como
é frequente uma atitude de grande apego à vida nos seus últimos momentos e
diante da revelação de uma doença, mesmo da parte de quem havia manifestado uma
atitude contrária quando se encontrava são. Tem sido evocado o exemplo da
médica francesa Silvie Ménard, que rasgou o seu testamento vital depois de lhe
ter sido diagnosticado um cancro, porque passou a querer “lutar” até ao fim. E
um caso ocorrido num hospital de Cambridge em Julho deste ano também é
significativo: estavam os médicos para desligar um aparelho que mantinha em
vida Richard Ruud, um homem paralítico e inconsciente devido a um acidente,
baseados numa declaração de vontade que este havia formulado verbalmente alguns
anos antes a propósito de um amigo também vítima de um acidente análogo; quando
ele, através do abrir e fechar de olhos, manifestou a sua oposição, que veio a
ser atendida. Afirmou, então, o pai, que tinha autorizado os médicos a desligar
o aparelho: “Estou feliz por lhe ter sido dada a oportunidade de sobreviver.
Decidir se um filho deve, ou não, viver é quase impossível”.
Está em jogo o
mais fundamental dos bens e a mais claramente irreversível de todas as decisões.
“Há solução para tudo menos para a morte” - diz o povo. Depois da morte, não há
nada a fazer. Depois de salva a vida, quem disso beneficia sempre poderá
pôr-lhe termo pelos seus próprios meios (o que até será pouco provável). Mais
vale, pois, salvar uma vida do que tomar uma decisão irreversível que conduz à
morte sem a certeza absoluta de que seria essa a vontade do doente. Esta dúvida
há-de subsistir sempre. Rege aqui o princípio in dubio pro vita.
Por isso, não
deverá ser vinculativa, nem deverá ser observada, uma declaração antecipada de
vontade
de recusa de tratamentos úteis
e proporcionados na perspectiva da salvaguarda da vida. Só assim o testamento
vital não será uma porta aberta à eutanásia.»
Nesta linha
também se pronunciaram os partidários da aprovação da lei italiana.
Francesco
d´Agostino salientou como as declarações antecipadas de tratamento podem ter
sido escritas muitos anos antes, ter perdido actualidade ou ser fruto de
condições de incrível fragilidade psicológica, económica e mental, que tornam
muito discutível a sua atendibilidade, baseada em informações inadequadas,
apressadas e insuficientes. Não são, por princípio. “actuais” e ninguém pode
ter
a priori a certeza da capacidade
de entender e querer do subscritor, sobretudo no que se refere às possíveis
patologias e às relativas práticas médicas e bioéticas. Considerá-las
vinculativas em qualquer caso seria expressão de uma “imperdoável ingenuidade
iluminista” e traduzir-se-ia numa prática introdução da eutanásia (com outro
nome) no ordenamento jurídico
.
Rocco
Buttiglione, filósofo e deputado, realçou que a renúncia a tratamentos de apoio
vital ou terapias “salva-vida” é um acto pessoalíssimo que não pode ser
delegado em ninguém, devido ao carácter extraordinário e irreversível do acto.
Cada acto de vontade ocorre numa específica situação existencial e deve ser
colocado nesse seu contexto. A situação do coma é diferente da do momento em
que se redige tal declaração e não pode abstrair-se desta diferença. O caso das
tentativas de suicídio, em que a pessoas acaba por agradecer a quem impediu a
consumação deste, é a demonstração eloquente de como é frágil e precário o
fenómeno da vontade em circunstâncias excepcionais, como é certamente o do
momento da iminência da morte. Daí que se justifique uma presunção a favor da
vida na ausência de uma vontade actual em sentido contrário. Para além desta
questão de princípio, razões pragmáticas aconselham a evitar ao máximo o
difundir de atitudes de rejeição de tratamentos necessários quando há
inequívocas possibilidades de recuperação
.
O filósofo
Giacomo Somek Lodovici também salientou como a vontade pode mudar de acordo com
as situações, e de um modo que nunca esperaríamos. Relembrou o caso de Sylvie
Ménard, que, depois de se bater pela legalização da eutanásia e de ter redigido
um testamento vital, mudou radicalmente de vontade quando lhe foi diagnosticado
um cancro, afirmando que escreveu esse “testamento” quando estava sã, mas agora
quer rasgá-lo e viver até ao fim, agora que «a morte não é um conceito
virtual». E também o caso de Jean-Dominique Bauby, retratado no filme
O escafandro e a borboleta, que, perante
a sua imobilidade e incapacidade de comunicar sem ser através dos movimentos
das pálpebras, inicialmente queria morrer e veio a mudar de propósito devido ao
afecto que recebeu, vindo a relatar a sua experiência no livro que serviu de
base a esse filme. É frequente que doentes graves inicialmente desejem morrer e
posteriormente venha a prevalecer o seu apego à vida, sobretudo se assistidos,
confortados e beneficiários de cuidados paliativos. Por tudo isto, o princípio
da precaução justifica que a mínima dúvida sobre o sentido da vontade do doente
(e isso verifica-se sempre que ela não é actual) leve à prevalência da
protecção da vida
.
A propósito do
caso do inglês Richard Ruud, já acima referido, afirmou Michele Aramini,
professor de bioética: «Uma coisa é a vontade que se exprime quando se está de
plena saúde, ou sob a influência dolorosa da difícil condição existencial de um
amigo ou familiar; outra completamente diferente é decidir sobre si mesmo no
momento em que nos tornamos fragilíssimos e ligados à vida por um fio.
Descobre-se, então, que não desejamos partir esse fio, por mais fino que ele
seja.»
Carlo Casini,
jurista, deputado ao Parlamento Europeu e presidente do
Movimento per la Vita apontou outra importante diferença entre uma
expressão de vontade actual e consciente e uma expressão de vontade escrita por
uma pessoa inconsciente no momento em que toma a decisão de renúncia a um
tratamento. Em resposta à tese de Stefano Rodotà e de outros adversários da lei,
segundo os quais o princípio da igualdade imporia a relevância, nos mesmos
termos, de uma e outra dessas expressões de vontade, salienta que essa
diferença reside na possibilidade, que existe no primeiro caso, mas não no
segundo, de o doente ser aconselhado pelo médico e familiares. Este diálogo
desemboca normalmente na aceitação de um tratamento que o doente inicialmente
até poderia recusar. Neste diálogo, o conselho no sentido do tratamento útil e
proporcionado é sempre de louvar, sendo o conselho ou a pressão em sentido
contrário censuráveis, ou mesmo criminosos. A cristalização da precedente
declaração fixa definitivamente a discriminação do doente inconsciente, que
pode morrer sem a possibilidade de um diálogo que até poderia fazê-lo desistir
desse propósito. Só com o carácter não vinculativo dessa declaração se garante
a igualdade
.
Salientando
bem a diferença entre a vontade actual e a vontade antecipada, afirmaram Carlo
Casini, Marina Casini e Maria Luisa di Pietro:
«As primeiras
(as vontade actuais) são expressão de uma autonomia aberta à relação que se
confronta com a situação real e concreta de doença ou deficiência; amadurecem
no âmbito de uma aliança terapêutica na qual o médico se empenha pessoalmente
de um ponto de vista humano e profissional. A comunicação, a informação
completa e calibrada sobre o paciente, a escuta das verdadeiras necessidades do
doente, a avaliação de todos os factores em jogo, a avaliação da doença ou do
trauma de acordo com o que verdadeiramente representam naquele momento para aquela
pessoa, tudo isto são elementos que concorrem para a formação de um
consentimento, ou não consentimento, consciente e responsável. As segundas (as
vontades antecipadas), pelo contrário, desligadas da situação objectiva de
doença ou trauma, fora de uma “aliança terapêutica” e da real dimensão
psicológica inevitavelmente determinada pela doença ou pela deficiência,
afastam-se da actuação de um verdadeiro consentimento informado, acabando por
reduzi-lo – contrariamente aos propósitos da doutrina e da jurisprudência – a
uma prática documental, burocrática e administrativa, que responde mais às
exigências de uma medicina defensiva do que às de um real participação do
paciente no processo terapêutico que lhe diz respeito»
.
Também Mons.
Roberto Colombo, membro da Academia Pontifícia da Vida e do
Comitato Nazionale per la Bioética,
salienta este aspecto: a escolha cristalizada numa declaração escrita
antecipada não é uma escolha em confronto com quem está próximo do doente, o
ama e o assiste, não é uma escolha partilhada com quem lhe quer bem e dele
cuida; sendo que a pessoa e o doente não vivem numa ilha deserta, não são
auto-suficientes e seguros de si, mas dependentes e em estado de necessidade
física e psicológica. Considerar essa hipotética escolha como exercício de
auto-determinação é abstrair das condições concretas, de tempo e lugar, em que
se manifesta a vontade
.
Cesare
Mirabelli, presidente emérito do Tribunal Constitucional, também salientou
estas ideias, de que o respeito pela autonomia não pode descontextualizar as
manifestações de vontade e ignorar a falta de relação imediata com o médico. O
consentimento informado supõe a sua actualidade, não é abstracto e hipotético,
mas exige a avaliação da situação concreta da pessoa no contexto de uma relação
de confiança como o médico. E invocou uma decisão da
Corte di Cassazione que negou relevância a uma expressão de vontade
de recusa de transfusão sanguínea de uma pessoa aderente à testemunhas de Jeová
por não se tratar de uma expressão actual e não estarem, por isso, afastadas
todas as dúvidas sobre a eventualidade de a pessoa ter mudado de propósito
.
Numa
perspectiva mais ampla, os partidários da lei acentuaram a centralidade do
princípio da indisponibilidade da vida humana, que se sobrepõe ao da autonomia
e justifica a punição da eutanásia voluntária. O relevo das declarações
antecipadas de tratamento não poderá servir de antecâmara da eutanásia, contra
o que pretendem muitos dos adversários da lei, alguns deles (não todos,
certamente) também partidários da legalização da eutanásia.
Paola Binetti
afirmou que a lei não despreza a autonomia, apenas não a absolutiza: tudo é
permitido ao doente, excepto pedir a sua morte antecipada, quase tudo é
permitido ao médico, excepto antecipar a morte do doente. É falsa a dicotomia
entre a vida e a liberdade, pois esta não tem sentido sem aquela. O princípio
da auto-determinação há-de ser conjugado com os princípios da beneficência e da
tutela da vida
.
Na verdade,
não é lógico contrapor o valor da vida humana ao valor da liberdade e da
autonomia. É que a autonomia supõe a vida e a sua dignidade. A vida é um bem
indisponível, o pressuposto de todos os outros bens terrenos e de todos os
direitos. Não pode invocar-se a autonomia contra a vida, pois só é livre quem
vive
. Não
se alcança a liberdade da pessoa com a supressão da própria pessoa. A eutanásia
e o suicídio não representam um exercício de liberdade, mas a supressão da
própria raiz da liberdade. O “direito à morte” seria ainda mais contraditório
do que uma escravidão legitimada pelo consentimento da vítima. A liberdade não
pode servir para se anular a si própria. Este princípio já servia de base a
Kant para, antes de quaisquer outras razões, negar legitimidade ao suicídio. E
também tem alicerçado a noção de indisponibilidade dos direitos humanos
fundamentais, que as primeiras históricas declarações sempre afirmaram como
“inalienáveis”, isto é, dotados de um valor objectivo e intrínseco,
independente da vontade do seu titular.
O jurista
Alberto Gambino também salientou, a propósito desta Lei, que o princípio da
prevalência da tutela da vida humana e da sua dignidade sobre a autonomia
também subjaz a muitos outras regras do ordenamento jurídico, desde a ilicitude
de muitas formas de autolesionismo, do consumo e tráfico de drogas, da
prostituição, do trabalho em condições humanamente degradantes, até ao uso
obrigatório de capacete ou cinto de segurança
.
Nessas e
noutras situações (a punição do homicídio a pedido e do incitamento e auxílio
ao suicídio; do consumo e tráfico de drogas; da escravidão mesmo que
consentida; da exploração da prostituição, da maternidade de substituição ou do
tráfico de órgãos; o carácter irrenunciável de direitos laborais ou de segurança
social; a obrigatoriedade, mesmo contra a vontade do beneficiário, de regras de
segurança no trabalho, segurança rodoviária e de segurança alimentar; a
definição de um núcleo de risco ilícito no âmbito do desporto e do lazer; até a
proibição de tomar banho na praia com bandeira vermelha) parte-se do
pressuposto de que a vida humana e núcleos essenciais da dignidade, da
liberdade e da saúde humanas são bens indisponíveis. É assim porque a vida é o
pressuposto da própria liberdade. E também porque condições concretas de
deficiente informação ou de debilidade existencial, social e económica fazem
com que certas manifestações de vontade deixem de ser autêntica expressão de
autonomia (o consentimento para a prostituição, a maternidade de substituição
ou a venda de órgãos por parte de quem só assim consegue garantir a
subsistência, por exemplo).
A este
respeito, o professor de Direito Penal Luciano Eusebi, também a propósito das
declarações antecipadas de tratamento, acentuou os perigos para a situação dos
mais débeis (existencial, familiar, social e economicamente) e, por isso, mais
propensos a exprimir a rejeição de tratamentos eventualmente onerosos mas
necessários e justificados. Não podemos ignorar um contexto de cada vez mais
forte pressão cultural no sentido de a sociedade se libertar dos custos de
terapias adequadas, mas onerosas. Neste contexto podem surgir pedidos de
renúncia a tratamentos até com motivações pretensamente solidaristas de quem
não quer ser um peso para a família e a sociedade, pedidos que uma
solidariedade autêntica não pode aceitar, porque contrários à irrenunciável
dignidade da pessoas em todas as fases da sua vida e particularmente em
condições da maior debilidade
. Um
aspecto também salientado por Rocco Buttiglione: há que evitar ao máximo o
difundir de atitudes de rejeição de tratamentos necessários quando há
inequívocas possibilidades de recuperação. A difusão dessas atitudes (uma
potencial procura em massa da eutanásia) pode resultar da degradação das
condições de vida dos anciãos na sociedade hodierna e do enfraquecimento da
consciência da sua insubstituível riqueza, com a sua redução a um peso difícil
de suportar
.
Como vimos atrás, esta lei consagra o
princípio da
aliança terapêutica como
linha inspiradora da relação médico-doente, contrário a uma visão paternalista
do médico alheio à vontade do doente, mas também a uma visão daquele como
simples executor da vontade deste fora do quadro da sua deontologia. Paola
Binetti salienta como a absolutização da autonomia é incompatível com essa
aliança terapêutica entre o médico e o
doente. O doente não está só, relaciona-se e esta relação traduz-se nessa
aliança, que vai para além do
contratualismo, supõe uma confiança recíproca, é feita de perguntas e
respostas, fraquezas e apoios, ânsias e seguranças, dúvidas e receios. A autonomia
do doente não justifica a indiferença do médico. A liberdade e dignidade do
doente há articular-se com a liberdade e dignidade do médico no quadro
deontológico da sua missão. Por isso, a
aliança
terapêutica só pode ser finalizada à salvaguarda da saúde e da vida, não da
morte
.
Salientaram os
partidários da lei que não está em causa alguma violação da Convenção de Oviedo
(
Convenção dos Direitos do Homem e da
Biomedicina), pois esta, no seu artigo 9º, não consagra o carácter
vinculativo dos
desejos previamente
expressos por um doente que não esteja, no momento da intervenção, em
condições de exprimir a sua vontade (estatui, antes, que estes devem ser “tidos
em consideração”)
.
Carlo Casini, que participou nos trabalhos preparatórios dessa convenção,
invocou o facto de esta expressão (“tidos em consideração”) ter substituído a
de uma proposta anterior que apontava num sentido vinculativo (“determinados
por”)
À objecção de
que a limitação da relevância das declarações antecipadas de tratamento à rejeição
de tratamentos inúteis e desproporcionados as tornariam inúteis, pois essa
rejeição já decorreria da própria deontologia médica, respondeu Lucio Romano,
médico e co-presidente da associação
Scienza
e Vita, afirmando que entre os extremos de proporcionalidade e
desproporcionalidade de um tratamento há uma margem de opções em que a vontade
do próprio doente não pode deixar de assumir relevância
.
Como já vimos,
esta lei estatui que não é relevante uma declaração antecipada de tratamento de
rejeição da alimentação e hidratação, ainda que por meios artificiais, salvo se
estas se tornarem ineficazes face à capacidade de absorção do corpo (situação
que já configurará um procedimento inútil ou desproporcionado). A lei pretende,
deste modo, garantir a assistência, e o não abandono, aos doentes em estado
vegetativo persistente, evitando a repetição de casos como o da morte de Eluana
Englaro.
É de notar que
a aprovação da lei foi, por este motivo, saudada por associações de familiares
de doentes em estado vegetativo persistente
Justifica-se a
irrelevância de um pedido prévio de suspensão de alimentação e hidratação, pois
esta suspensão conduz, em regra, à morte por inanição e desidratação, é causa
directa, imediata e segura da morte, é a pessoa que assim procede a causar a
morte; o que não se verifica em caso de suspensão de um tratamento
extraordinário, em que a pessoa morre da doença que inevitavelmente a atinge
.
Por outro
lado, não pode dizer-se que a alimentação e hidratação sejam terapias (e
possam, por isso, deixar de ser devidas quando extraordinárias), pois não vão
de encontro a uma qualquer patologia ou disfunção e são necessárias também para
pessoas não doentes. Não releva o facto de para tal se usarem meios
artificiais, pois estes traduzem-se numa simples ajuda a quem não consegue
sozinho prover a essa alimentação e hidratação (como sucede com o idoso com
dificuldade de deglutição, ou o recém-nascido que é alimentado com leite
artificial). Só não será assim quando, na iminência da morte, o organismo deixa
de ter capacidade para assimilar as substância fornecidas e a alimentação e
hidratação já não atingem o seu fim (situação excluída pela lei em apreço, como
já vimos
).
Esta posição
coincide com a do magistério da Igreja Católica, expressa no discurso do Papa
João Paulo II ao congresso internacional
"Life-Sustaining
Treatments and Vegetative State: Scientific Advances and Ethical
Dilemmas", de 20/3/2004, e na
resposta da Congregação para a Doutrina da Fé aos bispos norte-americanos, de
1/8/2007
, assim
como na Carta dos Profissionais de Saúde do Conselho
Pontifício para a Pastoral da Saúde.
Mas também o
rabino-chefe de Roma, Riccardo Segni, médico e membro do
Comitato Nazionale per la Bioética, afirmou que o mesmo princípio é
partilhado pelo judaísmo
.
A respeito dos
doentes em estado vegetativo persistente, foi salientado, a propósito das
polémicas em torno da morte de Eluana Englaro e desta aspecto da lei em apreço,
que não se trata de doentes terminais, mas de doentes com profunda deficiência,
que as hipóteses de uma mais ou menos acentuada recuperação nunca estão
fechadas, e que não é seguro que não experimentem a dor (o que explica o facto
de a sentença que autorizou a morte de Eluana Englaro tenha determinado a sua
sedação)
.
Alguns
especialistas no tratamento destes doentes também se manifestaram contra a
suspensão da alimentação e hidratação de que possam beneficiar.
O neurólogo
Giulano Dolce, especialista nesta matéria, afirmou que essa suspensão provoca
dores atrozes que se prolongam por vários dias, provocando uma morte muito
longe de ser “digna”, sendo que ninguém quereria morrer assim se o soubesse
. E
assim também Mário Zampolini, também especialista em estado vegetativo
persistente, que se afirma de “esquerda” e não crente
.
Também o neurólogo israelita Leon Sezban, pioneiro em estudos sobre esta
doença, afirmou que se um juiz lhe mandasse suspender a alimentação e
hidratação de um destes doentes com base numa declaração escrita prévia,
dir-lhe-ia que o fizesse ele, juiz, porque ele, médico, nunca o faria, pois
sabe das consequências dessa acto e a alimentação e hidratação são parte da
dignidade devida a qualquer ser humano
.
Para os
partidários da lei em apreço a não suspensão da alimentação e hidratação dos
doentes em estado vegetativo persistente é uma exigência da Convenção das
Nações Unidas sobre direitos das pessoas com deficiência
.
A discussão em Portugal
Cabe-nos, de
seguida, analisar, à luz dos valores e princípios que inspiraram a lei italiana
acima mencionada, os projectos de lei sobre esta matéria objecto de discussão
parlamentar entre nós, quer os apresentados em legislaturas anteriores, quer os
apresentados na actual legislatura, e, sobretudo, a lei que veio a ser aprovada
(Lei nº 25/2012, de 16 de Julho), que resulta da confluência desses projectos,
o que explica a sua aprovação por unanimidade.
O Partido
Socialista apresentou na 11ª legislatura (a anterior) o projecto de lei nº 413/XI
2º, sobre o “direito dos doentes à informação e ao consentimento informado”,
que retomava, no essencial, o conteúdo de outro projecto, apresentado na 10ª
legislatura, com o nº 788/X. Na legislatura actual apresentou o projecto de lei
nº 62/XII 1ª, que “estabelece o regime das directivas antecipadas de vontade em
matéria de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional de Directivas
Antecipadas de Vontade”
Na exposição
de motivos destes diplomas acentuava-se a centralidade dos direitos dos doentes
à sua autonomia quanto aos cuidados de saúde.
O artigo 4º do
projecto de lei nº 62/XII 1ª, apresentado nesta legislatura (tal como o faziam
o artigo 13º, nº 1, do projecto de Lei nº 413/XI 2º e artigo 14º, nº 1, do
projecto de lei nº 788/X, apresentados nas legislaturas anteriores), estatuía,
a respeito do conteúdo do testamento vital: «através do testamento vital, o declarante adulto e capaz, que se encontre
em condições de plena informação e liberdade, pode determinar quais os cuidados
de saúde que deseja ou não receber no futuro, incluindo os cuidados de
alimentação e de hidratação, no caso de, por qualquer causa, se encontrar
incapaz de prestar o consentimento informado de forma autónoma.»
Ao contrário da lei italiana, não se excluía
do conteúdo das declarações antecipadas de vontade tratamentos úteis e
proporcionais à salvaguarda da vida, nem a alimentação e hidratação, que são
expressamente mencionadas. Também não se distinguia entre doenças terminais, ou
não terminais.
A respeito do
carácter vinculativo das declarações, havia diferenças sensíveis entre estes
projectos.
Os projectos apresentados
nas legislaturas anteriores continham preceitos que razoavelmente limitavam a
eficácia vinculativa das declarações antecipadas de vontade. O artigo 13º, nº
4, do projecto de lei nº 413/XI 2ª (artigo 14º, nº 4, do projecto de lei nº
788/X) estatuía que «a declaração antecipada de vontade é tida em consideração
como elemento fundamental para apurar a vontade do doente, salvo o disposto no
artigo 14º» (15º do projecto de lei nº 788/X)». O nº 5 do mesmo artigo 13º (14º
do projecto de lei nº 788/X) estatuía que «a eficácia vinculativa da declaração
antecipada de vontade depende, designadamente, do grau de conhecimento que o
outorgante tinha do seu estado de saúde, da natureza da sua doença e da sua
evolução; do grau de participação de um médico na aquisição dessa informação;
do rigor com que são descritos os métodos terapêuticos que se pretendem recusar
ou aceitar; da data da sua redacção; e das demais circunstâncias que permitam
avaliar o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade». «A
decisão do médico, em conformidade ou divergência com a declaração, deve ser
fundamentada e registada no processo clínico» (nº 6 dos mesmo artigos).
O artigo 14º,
nº 1, do projecto de lei nº 413/XI 2ª (tal como o artigo 15º do projecto de lei
nº 788/X) limitava a eficácia das declarações antecipadas de vontade nestes
termos: «O médico nunca respeita a declaração antecipada quando esta seja
contrária à lei ou à ordem pública, quando determine uma intervenção contrária
às normas técnicas da profissão, ou quando, devido à sua evidente
desactualização em face dos progressos dos meios terapêuticos, seja
manifestamente presumível que o doente não desejaria manter a declaração».
O projecto de
lei nº 62/XII 1ª, apresentado nesta legislatura, reforçava significativamente o
carácter vinculativo do testamento vital. O seu artigo 6º, nº 1, estatuía que
este será vinculativo desde que: conste
de documento escrito, lavrado em condições de esclarecimento e liberdade, e a
assinatura haja sido reconhecida presencialmente perante um notário ou perante um funcionário do RENDAV (Registo
Nacional das Directivas Antecipadas de Vontade); o outorgante tenha
apresentado ao notário ou ao funcionário do RENDAV um documento assinado pelo
médico responsável pelo esclarecimento, onde se ateste que o outorgante foi
cabalmente esclarecido sobre as opções e implicações das directivas que a
pessoa deseja manifestar, salvo se o outorgante
expressamente declarar que rejeita o referido esclarecimento; haja sido lavrado ou modificado há menos de 5
anos; identifique com rigor e precisão o tratamento ou intervenção que se
deseja recusar.
Essa eficácia vinculativa era limitada pelo
artigo 7º desse projecto, que estatuía: «A equipa médica não respeita a
declaração de vontade constante de um testamento vital quando esta seja
contrária à lei ou à ordem pública, ou quando determine uma intervenção
contrária às normas técnicas da profissão. (n. 1). A directiva antecipada de
vontade não é ainda respeitada quando seja manifestamente presumível que o
cidadão não a desejaria manter, quando se demonstre fundamentadamente que tal
declaração contraria a “história de valores” da pessoa em causa ou devido à
evidente desactualização da vontade manifestada em face do progresso dos meios
terapêuticos. (nº 2).
O desrespeito de um testamento vital
vinculativo configurava, nos termos deste projecto (artigo 13º, nº 2), a
prática de um crime previsto e punível pelo artigo 156º, nº 1, do Código Penal
(intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários)
Nestes projectos (mais claramente nos
apresentados nas legislaturas anteriores), estavam, pois, contempladas várias
situações que, razoavelmente, podiam conduzir à limitação da eficácia
vinculativa das declarações antecipadas de vontade. Mas da redacção destes
preceitos resultava que a declaração só não será vinculativa se o médico alegar
a verificação de alguma circunstância específica que permita suspeitar que a
vontade actual do doente não seria conforme com essa declaração. A dúvida
genérica a que acima me referi a propósito da lei italiana, e que não me parece
possa ser superada em absoluto (razão pela qual deveriam excluir-se do âmbito
de relevância das declarações antecipadas de vontade as intervenções e
tratamentos necessários e proporcionais à salvaguarda da vida), independentemente
do tempo decorrido, da informação do doente e da evolução da medicina, não seria
suficiente para deixar de atribuir eficácia vinculativa a essas declarações.
O disposto no
nº 1 do artigo 7º do projecto de lei nº 62/XII 1ª, apresentado nesta legislatura
(e na primeira parte do artigo 15º do projecto de lei nº 413/XI 2º, apresentado
na legislatura anterior) constituía, inegavelmente, uma barreira à eutanásia.
Seria «contrária à lei» (designadamente ao disposto nos artigos 134º e 135º do
Código Penal, que punem o homicídio a pedido da vítima e o auxílio ao suicídio)
uma declaração antecipada no sentido da prática da eutanásia activa, ou do
auxílio ao suicídio. Importa realçar este aspecto. Mas será que a omissão de
tratamentos necessários e proporcionais à salvaguarda da vida não constitui uma
eutanásia por omissão
? Não
o será, inequivocamente, quando essa omissão se baseia na vontade actual do
doente, que é insuperável, em face da deontologia médica, a qual não pode
deixar de o encarar como
sujeito, e não
simples
objecto, de tratamento. Mas
poderá tal omissão, sem resvalarmos para a eutanásia, basear-se numa vontade
presumida e não actual, de algum modo duvidosa? A lei italiana acima referida
entende que não, em nome do princípio
in
dubio pro vita, ao contrário deste projectos.
Os projectos
em questão também se afastavam deste princípio in dubio pro vita quando, na
parte final dos citados artigos 7º, n º 1, 14º, nº 1, ou 15º, fazem cessar a
eficácia vinculativa da declaração antecipada de vontade quando for manifestamente presumível que o doente
não desejaria manter a declaração. Em consonância com tal princípio, bastaria
que fosse presumível (e não manifestamente presumível) que o doente
não desejaria manter a declaração para que esta deixasse de ter eficácia
vinculativa.
Em suma,
parece-me que estes projectos de lei continham normas que podem servir de
obstáculo à eutanásia, mas não em termos absolutos e inequívocos.
O
reconhecimento (que é de aplaudir) do direito à objecção de consciência dos
profissionais de saúde a propósito da eficácia das declarações antecipadas de
vontade, decorrente do artigo 14º, nº 1, do projecto de lei nº 62/XII 1º, apresentado
nesta legislatura (e dos artigos 17º do projecto de lei nº 413/XI 2ª e do
artigo 18º do projecto de lei nº 788/X, apresentados nas legislaturas
anteriores) é um sinal de que essa eficácia pode colidir com os imperativos de
consciência de alguns médicos, o que não se compreenderia se estivesse em
absoluto afastada a prática da eutanásia por omissão.
O Bloco de
Esquerda apresentou na 11ª legislatura o projecto de lei nº 414/XI 2º, que «regula
do direito dos cidadãos a decidir sobre a prestação futura de cuidados de saúde
em caso de incapacidade de exprimir a sua vontade e cria o registo nacional do
testamento vital (RENTEV)». Logo no início da actual legislatura, a 12ª,
apresentou o projecto de Lei nº 21/XII/1ª, que retoma, no essencial, o conteúdo
do anterior.
Na exposição
de motivos de ambos os diplomas também se acentuava a centralidade dos
princípios da autonomia e da auto-determinação quanto aos cuidados de saúde.
Quanto à
definição do conteúdo das declarações antecipadas de vontade e aos limites à
sua eficácia, estes projectos não se distinguiam, no essencial dos do PS e
contra eles valem as objecções acima indicadas
O artigo 3º de
ambos os projectos também não excluía das declarações antecipadas de vontade
tratamentos úteis e necessários e proporcionais à salvaguarda da vida, nem
distinguia entre doenças terminais ou não terminais. O artigo 6º de ambos os
projectos estatuía que «é juridicamente inexistente,
não produzindo qualquer efeito jurídico, o Testamento Vital contrário à
legislação portuguesa ou que não corresponda às circunstâncias de facto que o
outorgante previu no momento da sua assinatura». O artigo 7º, nº 2, de ambos os
projectos estatuía que «o médico responsável e os restantes membros da equipa
que prestam cuidados de saúde ao outorgante do Testamento Vital respeitam
integralmente as instruções nele contidas, dentro dos limites estabelecidos na
presente lei, exceptuando os casos em que seja evidente a sua desactualização
face ao estado da ciência no momento em que o outorgante venha a encontrar-se
incapaz de expressar a sua vontade».
Também se consagrava o direito à objecção de consciência no
artigo 11º de ambos os projectos.
Há, porém, um aspecto que torna mais grave, na perspectiva
que venho defendendo, estes projectos, na medida em que é mais nítido o perigo
de resvalar no sentido da admissibilidade da eutanásia.
Afirmava-se na exposição de motivos de ambos os projectos
que o “testamento vital” deve ir de encontro à situação de muitas
pessoas que «recusam o prolongamento de uma vida sem mobilidade, sem autonomia,
sem relação ou comunicação com os outros, uma vida afastada dos padrões e critérios
de qualidade e dignidade pessoal pelos quais se conduziram toda a vida, uma
vida que recusariam prolongar se tivessem capacidade para fazer ouvir e
respeitar a sua vontade.» Pretendia-se, pois, dar cobertura legal explícita à
mentalidade subjacente à legalização da eutanásia quanto à desvalorização da
vida quando ela perde “qualidade”. A dignidade da vida humana deixa de ser uma
qualidade intrínseca e imperdível e passa a ser graduada de acordo com
critérios de “qualidade”. Reconhece-se que há vidas “indignas de ser vividas” e
“sem valor”. De modo especial, desvaloriza-se a vida dependente (a que pode
representar um “fardo” para os outros). Trata-se de veicular uma mensagem
cultural de desvalorização da vida limitada pela doença e pela deficiência que
não deixa de ter graves consequência sociais. Corre-se o risco de desistir de
combater o sofrimento das pessoas doentes e deficientes para as ajudar a
morrer, com o que também a sociedade se livra de um pretenso “peso”. Quem possa
sentir-se esse “peso” para os outros, a família e a sociedade, vê confirmada
essa sua sensação, quando ela devia, antes, ser contrariada, com a afirmação do
valor da vida em qualquer circunstância. Um risco que também foi salientado
pelos partidários da recente lei italiana, como vimos.
Ao primeiro
desses projectos, apresentado na legislatura anterior, eram juntos modelos
legais de “testamento vital” que concretizam essa mentalidade e especificam as
situações em que vida pode perder “dignidade”. Contemplava-se a hipótese de «doenças
graves e irreversíveis que afectem a autonomia, a capacidade de comunicação e a
qualidade de vida», sem as restringir a doenças terminais e sem limitar o grau
em que essas capacidades são afectadas. Contemplavam-se situações de ausência
de «expectativas de tratamento e recuperação sem sequelas que impeçam uma vida
autónoma e a capacidade de relação e comunicação com os outros». Contemplavam-se
situações de recusa de amputação de membros (excepto dedos), ainda que necessária
à sobrevivência. Pode dar-se, assim, cobertura a intenções que até se situarão
fora do âmbito da mentalidade subjacente à eutanásia, situando-se no âmbito da
pura e simples vontade suicida.
O projecto de
lei apresentado na actual legislatura (nº 21/XII 1ª) já não continha em anexo algum
modelo de “testamento vital”, estatuindo que tal modelo seria definido pelo
Ministério da Saúde (artigo 5º, nº 5). Nos termos do artigo 18º deste projecto,
os estabelecimentos de saúde, públicos e privados, seriam
obrigados a disponibilizar, em locais de fácil acesso e consulta pelos utentes,
informação sobre o “testamento vital” e sobre o procedimento para a sua
formalização, assim como tal modelo em suporte de papel pré-impresso.
Atendendo aos princípios subjacentes à exposição de motivos
deste projecto, não deixa de ser justificado o receio de definição do modelo de
“testamento vital” em termos semelhantes aos que constavam do modelo anexo ao
projecto apresentado na legislatura anterior. E de que a difusão em termos
amplos desse modelo, como pretendia o projecto ora apresentado, pudesse ser
interpretada como um convite e um estímulo à elaboração de “testamentos vitais”
que contemplem, precisamente, a recusa de tratamentos necessários e
proporcionais à salvaguarda da vida de pessoas com alguma deficiência, vida que
possa acarretar particulares encargos para a família e a sociedade. O
“testamento vital” seria um fácil pretexto para evitar tais encargos.
O PSD apresentou na legislatura anterior o projecto de lei
nº 428/XI, sobre “directivas antecipadas de vontade”. Na actual
legislatura apresentou o projecto de lei nº 63/XI, que “regula o regime das
directivas antecipadas de vontade”.
Na exposição
de motivos destes projectos de lei também se acentuava o princípio da autonomia
do doente. Mas aí se afirmava que tais declarações de dirigem «fundamentalmente,
a situações de doença terminal».
Na exposição
de motivos do projecto de lei nº 428/XI, apresentado na legislatura anterior, afirmava-se
que o projecto pretendia «no essencial, fixar o seu objecto naquilo que é hoje
designado como “excesso terapêutico”», o qual de traduz «em tratamentos médicos
onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados
esperados», e que recusar o “excesso terapêutico não significa que «se pretenda
dar a morte», mas «aceitar o facto de não a poder impedir». Este tipo de
afirmações já não constava, porém, da exposição de motivos do projecto de lei
nº 63/XII, apresentado nesta legislatura.
Estatuia o
artigo 5º de ambos os projectos, quanto ao conteúdo das “directivas antecipadas
de vontade”:
«1. Podem
constar do documento de directivas antecipadas de vontade disposições que
expressem a vontade do outorgante, de, caso se encontre em estado permanente de
inconsciência, designadamente:
a)
Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em
fase experimental;
b)
Não ser submetido a tratamento de suporte das funções
vitais se este ofender a sua liberdade de consciência, de religião ou de culto;
c)
Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou
desproporcionado, que apenas vise retardar o processo natural de morte;
d)
Receber todos os cuidados de saúde que segundo o estado
dos conhecimentos e da experiência da medicina se mostrem indicados para
minorar a doença de que sofre ou de que pode vir a sofrer;
e)
Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito
pelo seu direito a uma terapêutica analgésica adequada.
2. Podem ainda
constar do documento de directivas antecipadas de vontade disposições que
expressem a vontade do outorgante de não receber informação sobre o seu estado
de saúde em caso de prognóstico fatal.»
Estatuía, por
seu turno, o artigo 6º de ambos os projectos, quanto aos limites das “directivas
antecipadas de vontade”:
«1. São
juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito jurídico, as
directivas antecipadas de vontade:
a)
Que sejam contrárias à lei ou às leges artis;
b)
Cujo cumprimento possa implicar a morte no caso de a
pessoa não sofrer de doença terminal;
c)
Que não correspondam às circunstâncias de facto que o
outorgante previu no momento da sua assinatura.»
Estes projectos
já se aproximavam mais da lei italiana que começámos por analisar e contra ele
não procederão as objecções acima apontadas aos projectos anteriormente
analisados.
A exclusão da
eficácia das “declarações antecipadas de vontade” quando destas possa resultar
a morte de uma pessoa que não sofra de doença terminal (artigo 6º, nº 1, b))
afasta claramente do seu âmbito, ao contrário do que se verifica com os
projectos anteriormente analisados, intenções puramente suicidárias ou de
recusa da vida com deficiência.
Embora não
decorresse inequivocamente (pois o uso da expressão “designadamente” significa
que não estamos perante um elenco de situações taxativo) do citado artigo 5º
que o conteúdo dessas declarações não pode abranger a recusa de tratamentos úteis,
necessários e proporcionados à salvaguarda da vida, podia entender-se que tal
seria a mais razoável interpretação deste preceito. E é assim porque se fosse
outra a intenção do legislador certamente tal situação (pelo particular relevo
que tem) constaria do elenco das situações expressamente previstas; porque as
situações não expressamente previstas devem ter alguma equiparação (e não é
esse o caso) às que são expressamente previstas (estamos perante a técnica
legislativa chamada dos exemplos padrão);
e porque é o que resulta a contrario
sensu da previsão da recusa de tratamentos fúteis, inúteis ou
desproporcionados (a contrario sensu,
estará excluída a recusa de tratamentos úteis, necessários e proporcionados).
Essa interpretação também se coadunaria mais com a exposição de motivos do
projecto de lei nº 428/XI, apresentado na legislatura anterior, onde se afirmava,
como vimos, que o projecto se centra na recusa do “excesso terapêutico”, sendo
que, porém, esta referência já não constava da exposição de motivos do projecto
de lei nº 63/XII, apresentado nesta legislatura.
O CDS/PP apresentou na legislatura anterior o
projecto de lei nº 429/XI/2ª, que «regula as Directivas Antecipadas de Vontade
em matéria do Testamento Vital e nomeação de Procurador de Cuidados de Saúde e
procede à criação do Registo Nacional do Testamento Vital». Com a mesma
designação, apresentou na actual legislatura o projecto de lei nº 64/XII.
Na exposição
de motivos destes projectos também se sublinhava o relevo da autonomia da
pessoa doente, mas não deixava de se sublinhar que este valor tem de ser
articulado com o da inviolabilidade da vida humana. Aí se afirmava:
«(…) Nesta
linha, o respeito pela inviolabilidade da vida humana da pessoa doente, pela
sua dignidade e autonomia, são princípios e valores que enquadram a matéria que
este diploma aborda, não na lógica de que existe uma hierarquia de direitos das
pessoas mas antes uma harmonização no exercício dos mesmos, de modo a que a
defesa do exercício da autonomia individual não colida com a responsabilidade
por si e pelos outros. Do mesmo modo, importa aqui clarificar que entendemos a
dignidade como um importante valor inerente e intrínseco à condição humana, do
qual decorre depois o dever de respeitar essas mesmas pessoas, nomeadamente no
que concerne ao seu direito à autonomia. Apesar da vastidão do conceito,
realçamos que a dignidade contempla mas não se esgota no direito à autonomia.»
Quanto ao
conteúdo e limites do “testamento vital”, estatuía o artigo 4º de ambos os
projectos:
«1. Podem
constar no testamento vital e da procuração de cuidados de saúde disposições
que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante em:
a) receber
todos os cuidados de saúde que, segundo o estado actualizado dos conhecimentos
e da experiência da medicina, se mostrem indicados para minorar a doença de que
sofre ou de que pode vir a sofrer;
b) receber os
cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção
global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase
avançada;
2.Podem
constar do testamento vital e da procuração de cuidados de saúde disposições
que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante em:
a) não ser
submetido a tratamento considerado fútil e desproporcionado no seu contexto
clínico e de acordo com as boas práticas médicas, nomeadamente no que concerne
às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais;
b) não receber
informação sobre o seu estado de saúde em caso de prognóstico fatal;
3.São
juridicamente inexistentes e não produzem qualquer efeito jurídico as
disposições do testamento vital e procuração contrárias à lei, às leges artis, ou que não correspondam às
circunstâncias de facto que o outorgante previu no momento da sua assinatura.»
Também este
projecto se aproximava mais da lei italiana acima comentada. O conteúdo do
“testamento vital” estava definido no citado artigo 4º, que integrava um elenco
(aparentemente taxativo) de situações onde se incluía a recusa de um
«tratamento considerado fútil e desproporcionado no seu contexto clínico e de
acordo com as boas práticas médicas», mas não a recusa de tratamentos que, pelo
contrário, sejam necessários, úteis e proporcionados à salvaguarda da vida.
Deve, porém,
reconhecer-se que a referência à alimentação e hidratação artificiais podia dar
origem a algum equívoco. A mais correcta interpretação levaria a considerar que
a recusa de alimentação e hidratação artificiais que podem constar do
“testamento vital” seriam as que não são (ou deixam de ser) úteis, por não
atingirem o seu objectivo, na linha do que também estipula a lei italiana acima
analisada. Outra interpretação seria contraditória com o teor integral do
preceito em causa (que fala em «tratamento considerado fútil e desproporcionado
(…), nomeadamente no que concerne (…) às medidas de alimentação e hidratação
artificiais». O equívoco podia, porém, surgir, porque não é esse a regra quanto
à alimentação e hidratação, mesmo artificiais, que, como vimos, nem sequer
poderão ser consideradas um “tratamento” ou uma “terapia”.
Apesar das diferenças significativas entre estes
projectos, a lei que veio posteriormente a ser aprovada em resultado da
discussão parlamentar (a Lei nº 25/2012, de 16 de Julho, que «regula as diretivas antecipadas de vontade,
designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados
de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV)», foi-o por
unanimidade.
De mais
relevante, na perspectiva das questões acima analisadas, há que destacar, do
conteúdo da lei, o seguinte.
Estatui o
artigo 2º, sobre a definição e conteúdo do documento:
«1 —
As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento
vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo
próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre
interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua
vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde
que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se
encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.
2 — Podem constar do documento de diretivas
antecipadas de vontade as disposições que expressem a vontade clara e inequívoca
do outorgante, nomeadamente:
a) Não ser submetido a tratamento de suporte
artificial das funções vitais;
b) Não ser submetido a tratamento fútil,
inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico e de acordo com as boas
práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte
básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas
visem retardar o processo natural de morte;
c) Receber os cuidados paliativos adequados ao
respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado
por doença grave ou irreversível, em fase
avançada, incluindo uma terapêutica sintomática
apropriada;
d) Não ser submetido a tratamentos que se
encontrem em fase experimental;
e) Autorizar ou recusar a participação em programas
de investigação científica ou ensaios clínicos.»
A alusão à
recusa de “tratamento de suporte artificial de funções vitais” não constava dos
projectos apresentados pelo PSD e pelo CDS-PP. Tal tipo de tratamento pode
configurar excesso terapêutico, ou não;
também pode ser necessário e justificado na perspectiva da salvaguarda da vida,
apesar do seu carácter “artificial”. Pode, pois, suscitar-se, a este respeito,
uma objecção à luz da necessidade da salvaguarda da vida em face de uma
declaração de vontade não actual e, por isso, não absolutamente inequívoca.
Quanto à
recusa de tratamento “fútil, inútil ou desproporcionado”, nada haverá a
objectar. A alusão às medidas de “alimentação e hidratação artificiais que
apenas visem retardar o processo natural de morte”, que constava do projecto do
CDS-PP, impõe um esclarecimento na linha do que já acima referi.
Em regra, a
alimentação e hidratação artificiais não configuram um “tratamento fútil,
inútil e desproporcionado”. Não visam “retardar o processo natural da morte”
quando com elas se pretende evitar a morte não devida à doença em causa, mas
por inanição e desidratação. A morte por inanição e desidratação nunca
configura “um processo natural de morte”.
Quando a uma pessoa em estado vegetativo persistente se ministra alimentação e
hidratação artificiais (como no caso de Eluana Englaro) não se está a “retardar
o processo natural da morte” (não se trata de um doente terminal, mas de um
doente que padece de grave e extrema deficiência).
As situações
contempladas nas alíneas c), d) e e)
também não suscitam objecções.
Da enumeração
de todas essas situações pode concluir-se, a
contrario sensu, que não deverão ser atendíveis directivas antecipadas de
vontade de recusa de tratamentos não artificiais de suporte vital que sejam
úteis, justificados e proporcionados, ou a recusa de alimentação e hidratação artificiais
que não visem retardar o processo natural da morte. É certo que essa enumeração
não é taxativa (usa-se a expressão “nomeadamente”). Mas as situações nela não
contempladas hão-de ter alguma analogia com as que nela estão expressamente
contempladas (segundo a técnica dos exemplos
padrão, a que já me referi) e isso não se verificará nessas situações, que
representam o exacto contrário do que é expressamente indicado na enumeração.
Quanto aos
limites das directivas antecipadas de vontade, estatui o artigo 5º:
«São
juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito, as diretivas
antecipadas de vontade:
a) Que sejam contrárias à lei, à ordem pública
ou determinem uma atuação contrária às boas práticas;
b) Cujo
cumprimento possa provocar deliberadamente a morte não natural e evitável, tal
como prevista nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal;
c) Em que o outorgante não tenha expressado,
clara e inequivocamente, a sua vontade.»
Seria contrária à “lei” uma directiva antecipada de
vontade cujo cumprimento configure a prática de eutanásia activa voluntária, a qual
se traduz penalmente num crime de homicídio a pedido da vítima (previsto no
artigo 134º do Código Penal), ou o auxílio activo ao suicídio (previsto como
crime no artigo 135º do mesmo Código). Mais explicitamente, a alínea b) deste artigo (cujo conteúdo não
constava dos projectos) afirma isso mesmo, aludindo à provocação da “morte não
natural e evitável” e a esses artigos do Código Penal. Esta alusão merece
alguma atenção e aprofundamento.
Desta referência, também em conjugação com a redacção
da citada alínea
b) do artigo 2º,
pode concluir-se que, de acordo com o espírito da lei, às directivas antecipadas
de vontade deve ser dado relevo na perspectiva da aceitação do processo natural
da morte, e não na perspectiva da provocação de uma morte não natural e
evitável (uma coisa é
aceitar a
morte, outra
provocar a morte)
.
Pode questionar-se se desta alínea b) do artigo 5º também resulta que o
conteúdo das directivas antecipadas de vontade não abrange a eutanásia por
omissão, isto é, a provocação de uma morte não natural e evitável por omissão
de tratamentos úteis e justificados na perspectiva da salvaguarda da vida. Isso
dependerá da questão de saber se o crime de homicídio a pedido da vítima pode
ser praticado por omissão. O artigo 10º, nº 1, do Código Penal equipara a acção
à omissão («Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o
facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção
adequada a evitá-lo, salvo se for outra a intenção da lei»). Mas a punição da
omissão supõe, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, que sobre o omitente recaia
um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado (a chamada
posição de garante). O médico tem, em
geral, esse dever, salvo se a pessoa carecida da sua intervenção manifestar uma
vontade contrária a essa intervenção. A vontade actual não suscita dúvidas. Já
o suscitará uma vontade não actual, designadamente a que se exprime num
“testamento vital”. A alínea em questão servirá para não dar relevo a essa
vontade quando esteja em causa uma “morte não natural e evitável”?
Poder-se-á dizer que a exclusão da eutanásia activa
já decorreria da própria definição de “directiva antecipada de vontade” que
consta do citado nº 1 do artigo 2º (que é relativa à decisão sobre “cuidados de
saúde” a receber ou não receber, e não à prática de actos que possam provocar
activamente a morte). A citada disposição da alínea b) do artigo 5º poderá não ter sentido útil (ou ter esse sentido
muito reduzido) se não se traduzir na recusa da eutanásia por omissão (a qual
pode resultar da omissão de cuidados de saúde necessários na perspectiva da
salvaguarda da vida e poderia, por isso, resultar do cumprimento de uma
directiva antecipada de vontade).
Da redacção da lei aprovada não consta, como constava
do projecto apresentado pelo PSD, a exclusão de doenças não terminais do âmbito
de relevância das directivas antecipadas de vontade. Tal permitiria excluir
desse âmbito a vontade (suicidária) de rejeição da vida em condições de mais ou
menos grave limitação ou deficiência (ou de suposta menor “qualidade de vida”).
É de lamentar, à luz dos princípios a que venho defendendo, que esta exclusão
não conste da lei aprovada. Mas impõe-se reconhecer que, atendendo ao que
resulta das referidas alíneas b) do
artigo 2º e b) do artigo 5º, não
estamos, nesses casos, perante uma aceitação de uma “morte natural”, mas da provocação
de uma “morte não natural e evitável”. Poderá, por isso, e por força destes
dois preceitos, considerar-se que estas situações estarão excluídas do âmbito
das declarações antecipadas de vontade.
Quanto à
eficácia destas declarações, estatui o nº 2 do artigo 6º:
«2 — As
diretivas antecipadas de vontade não devem ser respeitadas quando:
a) Se
comprove que o outorgante não desejaria mantê-las;
b) Se verifique evidente desatualização
da vontade do outorgante face ao progresso dos meios terapêuticos, entretanto verificado;
c) Não
correspondam às circunstâncias de facto que o outorgante previu no momento da
sua assinatura.»
Não se exige,
pois, como o fazia o projecto apresentado pelo PS, que a possibilidade de
divergência entre o conteúdo da directiva antecipada de vontade e a hipotética
vontade actual do outorgante seja “manifestamente presumível” (o que poderia
ser considerado demasiado exigente à luz do princípio in dubio pro vitae), mas apenas que se comprove essa possibilidade.
Manifestação
desse princípio in dubio pro vitae é
o que dispõe o nº 4 desse artigo 2º:
«4 — Em
caso de urgência ou de perigo imediato para a vida do paciente, a equipa
responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o dever de ter em
consideração as diretivas antecipadas de vontade, no caso de o acesso às mesmas
poder implicar uma demora que agrave, previsivelmente, os riscos para a vida ou
a saúde do outorgante.»
O artigo
9º da consagra o direito à objecção de consciência, na linha do que faziam
todos os projectos apresentados.
Do confronto
entre a forma como a discussão desta questão ocorreu em Itália e em Portugal
não pode deixar de se notar o grande contraste entre a forma tão viva e polémica
da discussão em Itália e a discussão aparentemente consensual que deu origem à aprovação
por unanimidade da lei portuguesa. Esse contraste poderá causar alguma
perplexidade: será que o que dividiu os deputados italianos (que tem a ver,
sobretudo, com a questão do relevo de declarações antecipadas de vontade de recusa
de tratamentos úteis e proporcionados à salvaguarda da vida) não divide os
deputados portugueses, ou será que as razões dessa divisão foram ocultadas ou
minimizadas? Penso que a divisão em causa há-de reflectir-se na interpretação
da lei aprovada. Algumas das interpretações que acima proponho não serão
certamente consensuais. Mas, em meu entender, delas dependerá saber se a
regulação do “testamento vital” se traduzirá num primeiro passo em direcção à
legalização da eutanásia (como pretenderão alguns dos deputados que aprovaram a
lei), ou, pelo contrário, num obstáculo nessa direcção (como certamente também
pretenderão outros dos deputados que aprovaram essa lei).
Pedro Vaz Patto
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