segunda-feira, 9 de maio de 2011

O conservadorismo da indiferença


Não é a reivindicação que marca este dia estranho, é a perda.
Mil pessoas passam por mim na rua, mil pequenas derrotas pessoais, mil coisas perdidas que todos pensavam poder fazer, mil pequenos contratos que cada um pensava ter com o Estado, com o patrão, com a família, consigo próprio, perdidos.
Descontei toda a vida à espera de ter mil euros de reforma e agora tiram-ma. Pensava ter esta reforma e já não a vou ter.
Não vai dar, a minha filha vai ter que me ajudar. Mas como é que o pode fazer, agora que o marido a deixou e o infantário é mais caro?
Pensava ganhar seiscentos e afinal vou ganhar apenas quatrocentos. Onde é que vou cortar? Como é possível que este remédio que tenho que tomar todos os dias custe agora mais dez euros? Será que posso tomá-lo apenas dia sim, dia não? Fará o mesmo efeito?
É melhor não comprar esta carne, mas sim o frango, para poupar oito euros. Tenho que começar outra vez a pensar em escudos, oito euros é um conto e seiscentos. Como é possível esta carne custar tanto?
Vou dizer à minha mulher que é melhor só ir uma semana de férias, vai ficar furiosa e dizer que as crianças precisam de sol, de iodo e ela chega a Agosto tão cansada. Mas não pode ser.
Não gostei de ver a cara do patrão hoje. Já não vejo o patrão há um mês, o que é que estará a acontecer?
O Alberto disse-me que há um problema com os fornecedores.
Onde é que eu vou buscar seiscentos euros para o condomínio arranjar o elevador? Como é que vou todos os dias subir quatro andares? Já me faltam só três meses para acabar o subsídio de desemprego, não sei como vai ser.
O comboio subiu, o autocarro subiu, o barco do Barreiro subiu. Já viste esta factura da electricidade? Como é possível?
O rapaz pediu-me dinheiro para sair à noite. Pediu-me ontem, pede-me hoje. Dei-lhe dez euros, queria vinte. Não pode ser.
Como é que vou pagar a prestação da casa? Este mês são mais cinquenta euros.
A Carris acabou com a linha do autocarro, como é que eu chego ao emprego?
A Maria contou-me que já não suporta ter que estar na mesma casa com o João, mas ele não tem para onde ir.
O meu "ex" deixou de pagar para os filhos, a minha prima não paga o que me deve e o meu marido está furioso porque bem me disse para não emprestar nada.
Como é que vou pagar esta contribuição, já viste o que subiu? E agora querem penhorar-me a casa. Se me tiram a casa, para onde é que eu vou?
Fiz aquele trabalho de electricidade para a Módulo - Informática e eles não me pagam, a loja está fechada e pela montra vê-se o correio no chão, é só cartas das Finanças. E agora que já paguei o material, como é que vai ser? Vou "arder" em mil euros?
Etc., etc., etc.


É assim. Depois olha-se para os jornais e as sondagens funcionam como um indicador de inevitabilidade, mostrando o mesmo absurdo que é quanto mais se precisa de mudar, não há forças para a mudança, o conservadorismo da indiferença impera. Está tudo tão mal que mais vale manter-se tudo como está. Onde não há esperança, não há mudança.

Pacheco Pereira

(Versão do Público de 7 de Maio de 2011.)

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