terça-feira, 27 de maio de 2014
O Miguel é irmão do meu cunhado. E como o meu cunhado é meu irmão, o Miguel era um dos meus. Não era da minha geração e por isso não compartilhei muitas das fases importantes da sua vida. Mas fui ao seu casamento e acompanhei o nascimento e crescimento das suas pequenas filhas. No verão, na quinta dos pais, onde durante anos todos convivemos à volta da piscina, o Miguel lá estava. Era uma presença que se sentia porque não se impunha. Lá estava, com um sorriso sempre, sempre, afável e gentil.
Uma doença impiedosa levou-o aos 46 anos. E foi assim que todos o vimos a fundo. É engraçado como o sofrimento pode mesmo ser uma lente que amplia para além do que se pode imaginar, a verdadeira natureza do ser humano.
Ao contrário do que se podia esperar porque, para a maioria de nós, a morte é mesmo o contrário da vida, o Miguel foi capaz de, durante cerca de nove meses, enfrentar cada fase desta experiência como era preciso. Combativo, determinado, exigente, positivo, esclarecido, lutou em Portugal e fora aceitando tratamentos difíceis e acreditando na respetiva eficácia.
Quando, nesta última fase, se percebeu que a doença ia ganhar, deu-nos uma magistral lição de compreensão desse fenómeno sobrenatural que é a fé; a fé de que a vida não termina nesta passagem terrestre, e de que o amor é a ponte, a única ponte, que nos pode fazer aceitar sem um precipício pelo meio, as duas realidades.
Percebi pelo que vi e pelo que me contaram, que lhe foi possível rir, conversar, torcer pelo Benfica, partilhar histórias engraçadas e, quando fazia sentido, agradecer a visita, o acompanhamento durante a doença, o serviço feito em casa, a maior e a mais pequena das coisas sempre sereno, sempre pacífico e sempre feliz.
Mas, mais do que isso, a sua atitude ajudou ainda que alguns dos que o rodearam mais de perto mostrassem igualmente uma dose extraordinária de generosidade, de humanismo, de companheirismo e até dessa fé que eu jurava que não conheciam.
A começar pela sua mulher, que manteve uma coragem íntegra e uma lucidez cristalina que permitiu sobretudo às suas duas filhas continuar a viver a vida de todos os dias e a acabar nos pais. Aqueles para quem a perda de um filho não tem nome, como tão bem lembrou o celebrante.
Os filhos sem pais são órfãos, o marido ou a mulher sem o cônjuge são viúvo ou viúva mas não há nome para quem perde um filho. São pais com um fogo lá dentro, misto de perda e de felicidade, de saudade e de orgulho, de revolta e de paz.
Por isso acabamos todos a dizer "até logo" ao Miguel, convencidos que ficamos de que viu como nenhum de nós que a segunda parte da existência, mesmo vista do lado de cá, é suave e feliz.
Sei que se pudéssemos evitaríamos que todos morressem; também sei que nos parece que só estamos programados para viver; por isso tantos de nós sobrevivem a tanto, aguentam tanto; mas ver um homem tão novo e tão cheio de vida e de planos, aceitar um destino tão imprevisto, põe-me a pensar que decerto sempre temos cá dentro um grão de infinito que só não germina e não cresce porque não nos damos de olhos fechados, sem perguntar porquê.
Se o soubéssemos fazer ficava tudo mais em perspetiva, percebíamos que o hoje e aqui é sobretudo parte de um caminho e não um sprint pela realização apressada e tantas vezes trauliteira.
Sinto pudor em escrever sobre alguém tão próximo e sobre uma experiência tão pessoal mas também sinto que este meu muito simples tributo ao Miguel é um tributo a muitos e muitos que como ele são corajosos, amigos, serenos, determinados, fortes, sensíveis, autênticos, conscientes de uma humanidade poderosa que se consegue reerguer gloriosa do meio do mais puro sofrimento.
Não devíamos precisar de tão pungentes momentos para sentir que grande parte do que nos rodeia é menos do que a espuma dos dias, e no entanto...
Cristina Azevedo JN 2014-05-23
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