sábado, 9 de novembro de 2013
Na coletânea de ensaios e reflexões intitulada "Velai comigo - Inspiração para uma vida em Cuidados Paliativos", a autora, Cicely Saunders (1918-2005), explora a «relação entre a biografia pessoal, a vida espiritual e uma ética do cuidar».
«Narrada na primeira pessoa, recorrendo a uma série de influências religiosas e filosóficas, e apoiada numa motivação primária de cuidar dos que estão em fim de vida, “Velai comigo”, debruça-se sobre a experiência do sofrimento humano, a mortalidade e a busca de sentido».
«Este não é um livro apenas para especialistas ou profissionais de saúde. “Velai comigo” aborda como morremos no mundo atual. Nesse sentido, é um livro para todos nós.»
Apresentamos um excerto da obra prefaciada por Isabel Galriça Neto, médica de Cuidados Paliativos.
Enfrentando a morte
A maior tristeza de um paciente moribundo é o fim das suas relações e responsabilidades. Vivemos em interação com os outros, e à medida que a fraqueza invasora leva à mudança das nossas funções, à medida que o assalariado já não pode trabalhar ou a dona de casa tem de passar as suas atividades de cuidado da família a outros, é difícil não nos sentirmos inúteis e humilhados.
A família aproveita, muitas vezes e prontamente, a oportunidade de saldar dívidas de amor e cuidados, mas não é fácil ser continuamente a causa da preocupação das outras pessoas, e, por isso, este processo de cuidados deve ser feito com sensibilidade. Pode-se aproveitar este tempo para curar amarguras e para promover reconciliações, o que, como em qualquer tempo de crise, pode acontecer surpreendentemente depressa. («Vivemos uma vida inteira em três semanas.») Mas para isto ser bem feito, pelo menos alguma da verdade sobre a situação tem de ser partilhada.
As famílias pensam, muitas vezes, que têm de proteger a pessoa moribunda da verdade, mas isto é, quase sempre, um engano. O paciente acaba por saber, por outros meios, e fica então ainda mais isolado, incapaz de partilhar a sua preocupação por outros e por ele próprio. Fingir continuamente inibe e é exaustivo para ambos os lados.
Por mais difícil que possa ser enfrentar a despedida, sermos verdadeiros tanto quanto possível ajuda a atravessar a ansiedade e a dor que esta causa. Algumas famílias partilham pouco uns com os outros, durante a sua vida. Há pessoas que passam toda a sua vida a evitar realidades desagradáveis. Estes ou outros grupos de pessoas nem sempre serão bem sucedidos. Não se devem apressar as revelações duras e podemos ter de esperar que verdades parciais sejam gradualmente absorvidas, mas é certo que partilhar um pouco destas verdades já facilitou, surpreendentemente com frequência, o crescimento familiar.
Os pacientes (e as famílias) podem continuar a ter esperança quando não há esperança, podem «tirar um dia de folga» da verdade concentrando-se numa viagem ou numa celebração e, ainda assim, conhecerem-se profundamente ao mesmo tempo.
A maioria das famílias que deixa o St Christopher Hospice com forças renovadas, após a morte de um doente, são aquelas que foram capazes de enfrentar a sua partida juntas. Continuará a ser difícil aceitar uma perda, fazer o luto, mas tais memórias ajudarão a fazer deste um processo criativo. A equipa de cuidados paliativos está pronta a trabalhar sozinha ou em grupos com aqueles que necessitam de ajuda especial nesta longa viagem dolorosa.
Enfrentar a morte implica enfrentar o fim de esperanças e de planos. A dor não é só física e social, é também profundamente emocional. De facto, a dor mental pode ser a mais difícil de tratar. A ansiedade causada pela doença e pelos tratamentos junta-se à depressão despoletada pela perda de capacidades. A maioria de nós tem razão para se sentir embaraçada ao revermos as nossas vidas, mas isto, nos doentes graves, é, muitas vezes, confundido com sentimentos vagos e irracionais de culpa. Há pessoas que têm ataques de raiva, perfeitamente compreensíveis, ou de desespero devastador. No entanto, a depressão clínica é comparativamente rara entre os pacientes de cancro e o suicídio é incomum.
A tristeza é adequada e devemos encará-la e partilhá-la. Requer alguém que ouça, mais do que de fármacos, se bem que a combinação dos dois pode ajudar a levantar um peso inibidor e a permitir que um paciente derrube problemas que pareciam impossíveis de gerir. Avaliar e rever este tipo de tratamento não significa manipular a mente, mas sim oferecer mais liberdade e força para se enfrentar a realidade. Os Sacramentos a anunciar o perdão de Deus podem apaziguar e a atitude de aceitação daqueles que rodeiam o doente pode confirmá-lo, sem palavras.
O maior receio é a perda de controlo. Ainda assim, mesmo sofrendo de um tumor cerebral avançado ou de uma falha nas capacidades mentais, pode ajudar-se a pessoa a focar-se e a encarar a situação, de acordo com a sua forma de ser. Uma filha, que descreveu a lenta deterioração da mente do pai com uma perceção amorosa, mas, ao mesmo tempo, científica, terminou a descrição tocante do seu último feito dizendo: «A mente e o corpo são inseparáveis, tanto quanto sabemos, mas a experiência sugere que não passam de ferramentas de valor inferior ao espírito, cujos propósitos servem».
O final desta história foi sereno e quando o seu pai, num momento notável de lucidez, comprometeu outros com o bem-estar da mulher que amava, «afundou-se numa demência tranquila, que se assemelhava a um sonho incoerente; a consciência nítida e a profundidade de sentimentos já não estavam presentes e nunca mais voltei a sentir angústia pelo seu mal-estar».
Lidar com a demência progressiva de alguém que amamos bastante, muitas vezes ao longo de anos, é uma das formas mais difíceis de enfrentar a sua morte. Quando o paciente está em casa, o que acontece a muitos, o cuidador ou o familiar que transfere o cuidado a profissionais, frequentemente apressados e sobrecarregados, enfrenta uma perda longa e difícil e frequentemente não recebe o apoio necessário.
Serão também alvo de ansiedade, depressão, raiva e desespero, e estes poderão ser exacerbados pela exaustão. A perda pode ser gradualmente aceite a nível intelectual, emocional e social e a agonia da separação reduzida também gradualmente, mas quando a morte finalmente chega, haverá ainda, quase de certeza, muito «trabalho de luto» por fazer.
Tal como o paciente que vai perdendo o controlo e que já não sente ser ele próprio, aqueles que perdem alguém têm um novo mundo por descobrir e aceitar. Não os podemos apressar a atravessar o entorpecimento, a dor emocional, a consciência progressiva do vazio da perda e a aprendizagem final de voltar a viver. Alguns necessitam de muita ajuda para expressar os seus sentimentos ao longo deste processo e podem precisar de autorização para pararem de se lamentar e de deixar que outros compromissos substituam esse vazio.
Aceitar uma perda intensifica a procura omnipresente do sentidos. O seguinte extrato de um diário ditado por Ramsey, que ficou cego e inibido de falar, devido a um tumor cerebral inoperável, mostra como se podem revelar novas perspetiva, e até mesmo novas fés, no ambiente de uma unidade de cuidados paliativos, e como morrer, assim como sofrer uma perda, pode, finalmente, conduzir a um novo crescimento:
«26 de Agosto de 1978: Surpreendentemente, acredito que vou encontrar um Deus. Não sei, exatamente, como é que isso irá acontecer, mas a sensação de que Jesus me encontrará e fará de mim tudo aquilo que eu sou, e mais ainda, não está distante e o facto de que Ele vem na altura em que mais preciso d'Ele, é igualmente surpreendente. Pensar que, em tão curto espaço de tempo e na minha situação, Jesus Cristo se aproxime de mim, para me cuidar, é da maior importância. Eu sei que será verdade. Annie está a escrever outra vez, assim como Jill. As pessoas que me conhecem amam-me e ficarão comigo para sempre. Todos me impressionarão. Apenas agora começo a aperceber-me, ao pensar em Deus, daquilo que Ele deve saber de mim e de quão significativo eu sou. Para mim, é bastante empolgante pensar no meu futuro e aperceber-me de que Jesus fará com que a minha vida funcione, de alguma forma, e isto é algo que eu gostaria de ter feito antes. Mas aquilo que me empolga ainda mais é a possibilidade de estender a minha vida neste mundo ou no próximo, de todas as formas que agora me são possíveis.
Viver a vida e viver a morte, pensei, era uma coisa estranha. Continuo a achar que o é. Quero tentar convertê-lo num espaço onde eu esteja com toda a gente, quando estiver morto ou vivo, um espaço que não irá mudar. Não sei como é que isto será feito, mas sei que assim vai ser. Não sei se vou morrer para sempre, mas sei que isso não interessa, pois as pessoas irão cuidar de mim e darei o meu melhor para cumprir tudo aquilo que Deus quer que eu faça. E isso é que interessa. Parece que estou a começar a minha vida com Deus e isso é fantástíco.»
A sintaxe de Ramsey perdeu-se mas aquilo que pretendia dizer é claro. Morreu duas semanas mais tarde, muito serenamente.
Todos nós precisamos de sentido nas nossas vidas e parece, a princípio, que enfrentamos a perda deste, quando enfrentamos a morte. A maioria das pessoas pensa sobre si própria através daquilo que fez, ao longo das suas vidas, e isso ajuda-as a perceber o seu lugar no mundo. À medida que as pessoas deixam de poder desempenhar o seu papel, tal como Ramsey não pôde continuar a ser produtor de televisão, grande parte da sua integridade parece desaparecer também. Como acontece a muitos outros, Ramsey, na sua resposta a uma situação completamente nova e extremamente dependente, encontrou uma nova identidade. O corpo parece ter uma sabedoria própria. Se seguirmos os seus ditames, à medida que os seus poderes diminuem, os do espírito podem encontrar novas forças e criatividade.
Aqueles que encontram uma verdade nova e duradoura nas suas vidas descobrem, tal como Ramsey o fez, que a vida pode ser entregue com esperança, não porque o eu seja indestrutível, mas sim pela confiança no Deus cujas mãos as seguram, tanto na morte como na vida. Aqueles que pensam que já não podem rezar por pura fraqueza podem apoiar-se na oração e no amor dos outros - «onde estou com toda a gente» - e, acima de tudo, podem confiar no Deus que conhece as nossas capacidades. O seu juízo, daqui em diante, é um «pôr tudo em ordem» e, acreditando que continuaremos a viver nas memórias daqueles que nos amam, podemos também acreditar que a nossa alma continuará a viver, seguramente, no amor invencível de Deus. E assim ganhamos confiança na comunhão de todos os Santos, a família de Deus.
Ramsey era invulgar, na medida em que conseguia exprimir isto na sua descoberta tardia de Deus. Muitos daqueles que não têm palavras, ou pelo menos nenhuma das expressões tradicionais, mostram, através da sua atitude, gestos e resposta aos que os rodeiam que estão a alcançar, confiadamente, aquilo que veem como sendo verdadeiro. Julgamos que este alcançar os aproxima da «Verdade».
Paula, jovem, loura e bela, tirou o crucifixo da cabeceira da sua cama e, no seu lugar, pôs um pequeno diabo vermelho e com chifres. Ofereceu-nos amizade e entretenimento durante semanas, mas, aparentemente, não tinha tempo para questões espirituais. Na sua última noite, perguntou à enfermeira em que é que ela acreditava. Quando esta lhe respondeu com uma simples declaração de fé em Cristo, Paula disse: «Não podia dizer que acreditava assim, não agora, mas será que posso dizer que tenho esperança?» Depois disto, removeu as pestanas falsas que usava durante o dia e a noite e entregou-as à enfermeira: «Já não quero mais isto.»
Mas o que acontece àqueles que não têm ou não aproveitam esta oportunidade? E aqueles que apenas sentem a ausência de Deus, quando estão fracos, ou sentem que perderam a sua fé? Alguns podem tomar as palavras do Nosso Senhor na Paixão, o «se for possível» de Getsemani e o «por que me abandonastes?» da Cruz, apoiando-se nelas, na escuridão. Outros, que não encontram a luz na vida, conhecê-lo-ão, certamente, na morte. (...)
«O fundamento mais importante para o St Christopher Hospíce é a esperança de que, ao zelar, ao cuidar dos doentes, devemos não só aprender a libertá-los da dor e da angústia, a compreendê-los e a nunca desiludi-los, mas também a estar em silêncio, a escutá-los e a simplesmente estar lá. Depois de aprendermos a fazer isto, descobrimos também que não somos nós os que fazemos o verdadeiro trabalho.»
Durante as duas décadas seguintes a isto ter sido escrito, o movimento de cuidados paliativos, um movimento que enfrenta a morte, doenças de evolução prolongada e o luto, progrediu muito. Os seus princípios básicos têm sido interpretados em muitos cenários diferentes e começou a ser integrado nos hospitais gerais e nos cuidados na comunidade. Esforça-se por acabar com a angústia terminal e o medo a ela associado, através da combinação de ciência clínica consistente e de atenção individual aos detalhes. Encara toda a família como a unidade de cuidados e tenta ajudar cada grupo a descobrir as suas próprias forças, à medida que partilham tanta verdade quanto possível sobre a situação.
Os profissionais deste movimento abriram-se às cóleras e aos medos que constituem a angústia dos moribundos e dos enlutados. Viram muitas pessoas fazer a viagem que começa com incredulidade, seguida de uma consciencialização gradual e, por fim, termina com a aceitação, e ofereceram-lhes a sua hospitalidade. Ao fazê-lo, compreendem que, muitas vezes, recebem mais do que dão, e que ganham novas forças e conhecimento, graças a estas pessoas. Enfrentar a morte é enfrentar a vida, e aceitar uma é aprender muito acerca da outra. Quando entendem isto, aprendem também que têm de partilhar, entre si, a sua própria experiência de perda e de mudança no trabalho.
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