É tese do psicólogo social Serge Moscovici
que, nas sociedades contemporâneas, o senso comum não é apenas produzido de
baixo para cima. Não é necessariamente fruto da sensibilidade popular, de um
tipo de aprendizagem tradicional depois assimilada e reelaborada por diferentes
segmentos sociais. O senso comum é cada vez mais também gerado de cima para
baixo. Tem na génese fórmulas elaboradas do saber académico ou científico que,
depois, se vão distanciando dessa matriz para se transformarem em conhecimento
de senso comum, através das interacções do dia-a-dia em que os indivíduos
participam. Trata-se de uma importante consequência social da massificação da
oferta escolar. Se as escolas não estão sozinhas na produção de conhecimento e
pensamento social, transformaram-se nas instituições mais eficazes nesse
domínio.
Não me reporto apenas a
aprendizagens informais. Aponto para aquilo que se ensina a partir dos
programas das disciplinas (as «matérias»). Não é difícil detectar disciplinas
ou temas específicos, inseridos nos mais diversos programas, que se destacam
pela sua função de condicionamento social explícito. As atitudes dominantes em
sociedades de escolarização massificada, por exemplo, em relação ao valor da
vida, ao poder político e à democracia, aos direitos humanos, a segmentos da
população fragilizados (deficientes, crianças, idosos, desempregados), à
protecção do ambiente, à diversidade racial e cultural, à imigração, entre
outros, são hoje, na essência, ao mesmo tempo, por um lado, produtos directos
do ensino formal e, por outro lado, respostas a pressões de diferentes
sensibilidades com conotações ideológicas reconhecidas no espaço público.
O problema é a radicalização dessa
tendência que deixa a impressão de que os programas e os currículos reflectem
projectos ideológicos-activistas que os usam como bandeiras de afirmação
política imediata. A possibilidade efectiva de se produzirem decretos e
reformas descontrolados transformou-se numa questão demasiado grave por ter
aberto a porta para que caminhemos a passo de corrida para frivolidades que
derivam de teses pouco ou nada consensualizadas, pouco ou nada testadas,
carentes da tutela de conjuntos de reputados especialistas em cada umas das
áreas científicas ou académicas específicas. Deste lote excluo os «cientistas
da educação», amálgama indefinida de pretensos sábios dispensáveis. Como se o
ensino fosse um brinquedo nas mãos de uns poucos que arriscam de ânimo leve
experimentalismos cujas consequências sociais, na sua complexidade, são quase
ignoradas e como se tudo se resolvesse no histerismo da praça pública.
É
importante deixar claro que os conhecimentos que entram no ensino formal apenas
deveriam ser legitimados após a ratificação por biólogos, psiquiatras,
matemáticos, filósofos, geógrafos, especialistas em literatura, historiadores,
entre outros, de reputação e trabalho académico reconhecido no âmbito da área
dos seus pares académicos. Para além da moda recente de se avaliarem os
professores, que tem laivos de loucura pura e simples, e como se não bastasse a
experiência negativa das áreas
curriculares não disciplinares (Área de Projecto, Estudo Acompanhado e
Formação Cívica), a Educação Sexual depressa e em força para as escolas
constitui outra ameaça latente que tipifica esses vícios. Deduzir destas
afirmações que se é contra a educação sexual ou contra a avaliação dos
professores é absurdo. O problema está no modo hippie-yuppie como as matérias são tratadas por activistas (apenas)
preocupados em fazer agenda política à custa da manipulação directa do ensino.
Salvo raríssimas excepções, o que se
ensina nas escolas ou se insere nas áreas de saber tradicionais com provas
dadas ao longo de gerações (Ciências, Biologia, Matemática, Literatura,
Químicas, Geografia, Filosofia, etc.)
ou não serve. Os
novos saberes que interessam não são os que nascem de geração espontânea. São antes
os ponderados acrescentos, os pequenos e importantes ajustamentos, as
correcções associadas ao muito saber que a milenar civilização ocidental há
séculos vem legando aos vindouros. Cito exemplos. Para valorizar a função
social da democracia e dos direitos humanos, não é necessário inventar uma nova
História, uma nova Literatura ou, sequer, uma nova disciplina curricular, pior
se ela se designar Formação Cívica.
Para aprender a respeitar o valor e a dignidade da vida não é preciso inventar
uma nova Filosofia, uma nova Biologia, muito menos uma nova disciplina
curricular. Para incentivar o respeito e a valorização da natureza e meio
ambiente não é preciso inventar novas Ciências, novas Físicas, novas Químicas,
nem sequer uma nova disciplina curricular. Para perceber os fluxos migratórios
ou o valor dos recursos naturais e materiais não é necessário inventar novas
Geografias, novas Economias ou novas utopias curriculares. Etc., etc., etc. As áreas académicas e científicas velhas servem na perfeição. O seu
potencial está muito longe de ser esgotado.
Quando considero que o ensino tem de
ser bem mais consertado e bem menos
progressista é também isso a que me refiro. Sacrificando a dignidade, o
tempo e o espaço das áreas de saber tradicionais, vimos nascer e afirmarem-se
as aberrações deslocadas de suportes programáticos académicos e científicos
credíveis, sem profissionais com formação específica nesses domínios,
aberrações rotuladas com nomes pomposos como Área de Projecto, Estudo
Acompanhado e Formação Cívica. A
última utopia, desconchavada como as outras, mas bem pior por se manter viva.
Seria importante travar e precaver a repetição desse tipo de erros.
Capítulo
V do livro O Ensino da História, de
Gabriel Mithá Ribeiro (FFMS – Fundação Francisco Manuel dos Santos)
Sublinhado nosso.
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