terça-feira, 22 de janeiro de 2013

ENSINO E SENSO COMUM


            É tese do psicólogo social Serge Moscovici que, nas sociedades contemporâneas, o senso comum não é apenas produzido de baixo para cima. Não é necessariamente fruto da sensibilidade popular, de um tipo de aprendizagem tradicional depois assimilada e reelaborada por diferentes segmentos sociais. O senso comum é cada vez mais também gerado de cima para baixo. Tem na génese fórmulas elaboradas do saber académico ou científico que, depois, se vão distanciando dessa matriz para se transformarem em conhecimento de senso comum, através das interacções do dia-a-dia em que os indivíduos participam. Trata-se de uma importante consequência social da massificação da oferta escolar. Se as escolas não estão sozinhas na produção de conhecimento e pensamento social, transformaram-se nas instituições mais eficazes nesse domínio.
            Não me reporto apenas a aprendizagens informais. Aponto para aquilo que se ensina a partir dos programas das disciplinas (as «matérias»). Não é difícil detectar disciplinas ou temas específicos, inseridos nos mais diversos programas, que se destacam pela sua função de condicionamento social explícito. As atitudes dominantes em sociedades de escolarização massificada, por exemplo, em relação ao valor da vida, ao poder político e à democracia, aos direitos humanos, a segmentos da população fragilizados (deficientes, crianças, idosos, desempregados), à protecção do ambiente, à diversidade racial e cultural, à imigração, entre outros, são hoje, na essência, ao mesmo tempo, por um lado, produtos directos do ensino formal e, por outro lado, respostas a pressões de diferentes sensibilidades com conotações ideológicas reconhecidas no espaço público.
            O problema é a radicalização dessa tendência que deixa a impressão de que os programas e os currículos reflectem projectos ideológicos-activistas que os usam como bandeiras de afirmação política imediata. A possibilidade efectiva de se produzirem decretos e reformas descontrolados transformou-se numa questão demasiado grave por ter aberto a porta para que caminhemos a passo de corrida para frivolidades que derivam de teses pouco ou nada consensualizadas, pouco ou nada testadas, carentes da tutela de conjuntos de reputados especialistas em cada umas das áreas científicas ou académicas específicas. Deste lote excluo os «cientistas da educação», amálgama indefinida de pretensos sábios dispensáveis. Como se o ensino fosse um brinquedo nas mãos de uns poucos que arriscam de ânimo leve experimentalismos cujas consequências sociais, na sua complexidade, são quase ignoradas e como se tudo se resolvesse no histerismo da praça pública.
            É importante deixar claro que os conhecimentos que entram no ensino formal apenas deveriam ser legitimados após a ratificação por biólogos, psiquiatras, matemáticos, filósofos, geógrafos, especialistas em literatura, historiadores, entre outros, de reputação e trabalho académico reconhecido no âmbito da área dos seus pares académicos. Para além da moda recente de se avaliarem os professores, que tem laivos de loucura pura e simples, e como se não bastasse a experiência negativa das áreas curriculares não disciplinares (Área de Projecto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica), a Educação Sexual depressa e em força para as escolas constitui outra ameaça latente que tipifica esses vícios. Deduzir destas afirmações que se é contra a educação sexual ou contra a avaliação dos professores é absurdo. O problema está no modo hippie-yuppie como as matérias são tratadas por activistas (apenas) preocupados em fazer agenda política à custa da manipulação directa do ensino.
            Salvo raríssimas excepções, o que se ensina nas escolas ou se insere nas áreas de saber tradicionais com provas dadas ao longo de gerações (Ciências, Biologia, Matemática, Literatura, Químicas, Geografia, Filosofia, etc.) ou não serve. Os novos saberes que interessam não são os que nascem de geração espontânea. São antes os ponderados acrescentos, os pequenos e importantes ajustamentos, as correcções associadas ao muito saber que a milenar civilização ocidental há séculos vem legando aos vindouros. Cito exemplos. Para valorizar a função social da democracia e dos direitos humanos, não é necessário inventar uma nova História, uma nova Literatura ou, sequer, uma nova disciplina curricular, pior se ela se designar Formação Cívica. Para aprender a respeitar o valor e a dignidade da vida não é preciso inventar uma nova Filosofia, uma nova Biologia, muito menos uma nova disciplina curricular. Para incentivar o respeito e a valorização da natureza e meio ambiente não é preciso inventar novas Ciências, novas Físicas, novas Químicas, nem sequer uma nova disciplina curricular. Para perceber os fluxos migratórios ou o valor dos recursos naturais e materiais não é necessário inventar novas Geografias, novas Economias ou novas utopias curriculares. Etc., etc., etc. As áreas académicas e científicas velhas servem na perfeição. O seu potencial está muito longe de ser esgotado.
            Quando considero que o ensino tem de ser bem mais consertado e bem menos progressista é também isso a que me refiro. Sacrificando a dignidade, o tempo e o espaço das áreas de saber tradicionais, vimos nascer e afirmarem-se as aberrações deslocadas de suportes programáticos académicos e científicos credíveis, sem profissionais com formação específica nesses domínios, aberrações rotuladas com nomes pomposos como Área de Projecto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica. A última utopia, desconchavada como as outras, mas bem pior por se manter viva. Seria importante travar e precaver a repetição desse tipo de erros.

Capítulo V do livro O Ensino da História, de Gabriel Mithá Ribeiro (FFMS – Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Sublinhado nosso.

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