Ginecologista apoia grávidas em dificuldade
Ao Presente Leiria-Fátima, Élia Santiago falou da realidade das mulheres que recorrem à IVG (Interrupção Voluntária da Gravidez) e da necessidade de concretizar estratégias para que “cada vez menos senhoras tenham de passar pelo desgosto de fazer uma IVG, em consequência de não terem recursos económicos para assumirem os seus filhos”. Objetora de consciência desde 1986, esta especialista fala da necessidade de um ” maior apoio e acolhimento social e económico por parte de todos os setores da sociedade à gravidez, às senhoras e às suas famílias a quem a IVG se apresenta como única solução”.
Entrevista a Élia Santiago, ginecologisca obstetra
Sempre foi uma pessoa envolvida com a questão do aborto.
Desde sempre quis ser médica porque sempre achei que o Ser Humano era uma obra maravilhosa. Quando conheci melhor a medicina e o Ser Humano nas suas vertentes psíquica e afetiva, achei que o meu lugar era mesmo na ginecologia obstetrícia, porque julgo que percebo as mulheres e o que é ser mãe.
No começo da minha vida profissional a mortalidade infantil era muito alta (anos 80) . Muitas senhoras chegavam à maternidade com os fetos mortos in utero. Percebi que a vida era realmente um mistério e que nós não tínhamos resposta para muitas patologias, e continuamos a não ter. E quanto mais evolui o conhecimento científico,, mais nos apercebemos da transcendência que envolve o nascer,o ter vida saudável e ou morrer. Para nós, médicos, a morte é uma realidade difícil. Certificar um óbito é pior que fazer uma cirurgia de várias horas, porque é o reconhecimento da nossa impotência e da nossa ignorância.
Esta defesa intransigente da vida resulta disso mesmo: quem dá a vida é que tem o poder de a tirar. O mundo científico não domina ainda todos os fenómenos que estão na origem de nascer um bebé saudável, vivo e vivedouro: Cada vez mais me fui maravilhando porque a vida tem um valor inestimável a todos os níveis.
Esteve envolvida, de forma concreta, na sensibilização da população a favor do NÃO, nos dois referendos ao aborto.
Nós, a Associação de Apoio e Defesa da Vida (ADAV), fizemos sessões de esclarecimento e debates, onde tentámos explicar à população que o direito que a mulher tem sobre o seu corpo é uma realidade que não inclui o direito sobre quem não se pode expressar, o embrião: a outra pessoa da gravidez. O grande problema foi sempre perceber porque é que as senhoras tinham ou teriam necessidade de interromper as suas gravidezes ,contrapondo ao paradigma de quem defenda a IVG como meio de liberdade da mulher e até como método contracetivo, uma vez que nestas campanhas não havia preocupação com a acessibilidade concreta e real ao planeamento familiar.
A atual lei que despenaliza a IVG até às 12 semanas não veio resolver o problema das mulheres que têm problemas quando engravidam, veio modificá-lo. A legislação vigente não respeita a mulher, porque não permite que as senhoras tenham aquilo que precisam: condições, abonos e garantias que lhes deem uma verdadeira opção,sobre a aceitação ou não das suas gravidezes.
Porquê a decisão de ser objetora de consciência?
Porque sou médica para tratar da vida e não é para a tirar ou para fazer qualquer procedimento que impeça que as pessoas vivam. Para mim, a vida é sublime e danificá-la nunca estará na minha mão. Ser objetora de consciência é o reconhecimento do valor incalculável da vida humana,da humildade a que a ciência nos obriga e, ao mesmo tempo, ser una com a natureza.
Na forma como vivencia a sua profissão e no modo como a desempenha, também intervém a sua perspetiva de crente?
Sim. Por exemplo, hoje em dia, já tenho 50 anos e mantenho-me a fazer urgências porque é um trabalho que reconheço que precisa de ser feito. A urgência é um lugar onde estamos a atender quem precisa, num espírito de apoiar e colaborar nesta dinâmica da vida. A maneira como observamos os utentes faz toda a diferença: se somos apenas um técnico, que observa, ou se somos uma pessoa que escolhe também dar um sorriso enquanto observa. Há uma mistura de atitudes técnica e humana e isso faz toda a diferença.
Nesse trabalho que desenvolve nas urgências, concretamente no Hospital de Santo André (HSA), tem uma noção próxima da realidade da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Como caracteriza a mulher que recorre à IVG?
Eu pedia-lhe que lhe chamasse senhoras... Porque elas são mesmo umas senhoras, em todos os aspetos, porque a maior parte delas tem tudo o que nós gostaríamos de ter, menos recursos económicos. Estas senhoras encontram-se grávidas, muitas vezes porque se esqueceram de tomar a pílula ou porque tomaram um medicamento que cortou o seu efeito ou por um sem número de razões… Depois, a sua conjuntura económica, social e familiar não lhes permite ter um outro filho. Então, vão à urgência para verem se estão realmente grávidas e datarem a gravidez. Depois, dizem-nos frequentemente amarguradas: “não posso deixar nascer este bebé”. Marcam a consulta para fazer a IVG, que funciona no espaço físico ao lado. É claro que nós observamo-las, datamos a gravidez com a ecografia… Muitas vezes, as senhoras não querem ver o embrião na ecografia e saem sempre tristes com a perspetiva de que estão mesmo grávidas e que a sua decisão será a de abortar.
Quais são as principais razões apontadas por quem recorre à IVG?
Muitas senhoras dizem que não podem ter o bebé, porque não têm recursos.
Dizem que no seu trabalho não lhes será permitido avançar com a gravidez porque são despedidas, e/ ou que não têm condições para pagar um terceiro bebé no infantário… Se lhes damos espaço, contam-nos os seus porquês. Estas senhoras têm sempre uma vida familiar preenchidíssima, como qualquer mãe de família, mas com poucos recursos. Para elas, uma nova gravidez mostra-se mesmo impossível. Estas senhoras não optam como se fosse uma escolha livre. Na vida e na cabeça delas não há recursos para mais um bebé. Elas não dizem “escolho abortar, mas “não posso ter este filho”.
São famílias que, à partida, não teriam dificuldades, porque tinham uma vida mais ou menos orientada, mas que a conjuntura lhes tirou meios. Ao mesmo tempo, a dificuldade que tiveram em recorrer a um planeamento familiar eficaz, atempadamente, também resulta, muitas vezes, de falta de formação adequada. Referem que se atrasam a ir buscar as pílulas à farmácia, pois nem todos os centros de saúde têm pílulas para entregar, - o direito ao planeamento familiar gratuito consignado na Constituição, lembro -, não dispõem de tempo para as suas consultas porque nem sempre são dispensadas dos seus locais de trabalho e,outras pensam que a sua fertilidade diminui por se estarem a aproximar dos 40 anos.
E no caso das jovens, quais são as razões invocadas?
Algumas das raparigas mais jovens, mesmo aquelas que têm uma escolaridade adequada à sua idade estão convencidas de que o preservativo faz contraceção eficaz e/ou que tomar a pílula engorda. Há uma subinformação e muita informação incompleta e errada,verificamos também a existência de mitos . A dificuldade de acesso às consultas de planeamento familiar faz com que, muitas vezes, os métodos de contraceção que utilizam não sejam adequados a cada estilo de vida, biótipo e idade.
Como decorre o processo da IVG?
Estando confirmada a gravidez e a idade gestacional dentro do prazo legal, a senhora vai marcar a sua consulta de saúde reprodutiva, onde é observada por dois médicos: um determina a idade gestacional outro faz a consulta e prescreve a medicação que faz a interrupção da vida do embrião, seguido de um medicamento para fazer o esvaziamento uterino.
Perante a realidade de que fala, reconhece algum tipo de estratégia que possa reduzir o número de IVGs?
O que me preocupa não é reduzir o número de IVGs. Aquilo que gostaria é que as famílias e as senhoras que se vêm obrigadas a fazer a IVG, porque não têm recursos para deixar nascer os seus bebés, tivessem o apoio que a sociedade lhes deve. As senhoras que vão interromper a gravidez porque simplesmente não querem ter mais um filho é um paradigma que não tem a ver com a realidade de muitas senhoras que fazem a IVG por falta de recursos económicos e porque não conhecem ninguém que as apoie: a arranjar lugar numa cresce e a protegê-las juridicamente do despedimento ou da não renovação do contrato de trabalho que as espera se prosseguirem com a gravidez.
As senhoras que estão grávidas e não querem abortar, e que não têm recursos para prosseguir com a gravidez e educar os seus filhos, sendo que o único apoio que a sociedade civil lhes dá é um número de telefone para marcar a consulta de Interrupção de Gravidez.
O que acha que pode ser feito?
Pergunto se nós, como Igreja, não podemos oferecer um apoio real a estas senhoras que vão abortar porque não têm meios, usando os recursos que já temos no terreno, em cada paróquia, creches e infantários.
O que está aqui em causa é apoiar as famílias que não têm opção de escolha relativamente a ter ou não outro filho devido aos parcos recursos que têm. Podemos apresentar-lhes a possibilidade, para elas verificarem se, com a possibilidade de terem creche, infantário e/ou apoio jurídico ao seu alcance,poderiam ter esse filho.
Estas famílias e estas senhoras poderiam assim ter opção de escolha,e não como até agora serem empurradas para a decisão que não quereriam tomar – a Interrupção Voluntária da Gravidez.
Temos de proteger as grávidas. Gravidez não é doença, mas precisa de proteção.
Por outro lado, gostava que pudéssemos fazer uma formação relativamente à nossa juventude e que os agentes pastorais (Clero, colégios católicos, catequistas, professores de Educação Moral e Religiosa,…) tomassem o seu papel de veiculadores de informação concreta e realista. Não é vergonha nenhuma admitir que precisamos de formação em áreas técnicas.
Qual é o estado de espirito de quem recorre a uma IVG?
É um desgosto e um sofrimento difícil de ultrapassar para as senhoras e para as famílias. Elas não recorrem a nenhum destes procedimentos de ânimo leve, mas porque sentem que não têm outra alternativa. Não se trata de uma escolha livre e despreocupada.
Entre 2010 e 2014, registou-se um decréscimo em cerca de 20% do número de IVG no HSA. Como interpreta esta diminuição?
Não sei se realmente se trata de um verdadeiro decréscimo. A crise fez com que as senhoras tivessem mais cuidado com a sua contraceção,o que foi acompanhado pela diminuição do número de partos até 2014. Nós verificamos também que as senhoras, muitas vezes, preferem fazer a IVG fora dos locais onde residem recorrendo ao nosso Serviço se há algum problema.
O aborto clandestino continua a existir?
Eu não consigo chamar aborto clandestino, mas trata-se de aborto acima das 12 semanas e as clínicas que o fazem, fazem-no descaradamente, levam o dinheiro que querem e são isentas de impostos. Basta ir à internet.
E a cada cristão, que papel lhes cabe nesta conjuntura?
O principal papel é o do acolhimento. Temos que acolher as pessoas. Este acolher é muito mais do que dar um pacote de fraldas, deve ser um acolhimento real. Devemos acolher a grávida com a sua gravidez e as limitações que esta lhe acarreta.Muito frequentemente as grávidas se queixam que no ambiente que as envolve não há colaboração para a sua situação.
Não acolhemos quando fazemos comentários como : “coitada, vai ter o terceiro filho” ou “coitada, grávida aos 40 anos vai ser um neto, não um filho, coitado”. Isto não é acolher. Muitas vezes, colocamos a nossa grelha de valores em cima das pessoas como se tivéssemos algum direito de o fazer. Esta falta de acolhimento faz com que as senhoras tenham vergonha de estar grávidas com uma certa idade e que não peçam colaboração porque sabem, à partida, que não vão ser acolhidas, mas julgadas.
Sem comentários:
Enviar um comentário