domingo, 16 de novembro de 2014

Pelo direito a nascer

 
 
Talvez muitos se recordem ainda de algumas das frases pronunciadas, aquando do referendo de 2007, por destacados partidários da alteração legal que conduziu à liberalização do aborto hoje vigente: «todos somos contra o aborto», «não queremos fomentar ou promover o aborto», «a lei que vier a ser aprovada vai limitar o aborto e salvar vidas» (esta última ideia foi várias vezes sustentada por José Sócrates, então primeiro-ministro).
Não posso pôr em causa a sinceridade e a boa-fé de quem pronunciou tais frases. Mas também não posso esconder o flagrante contraste entre tais propósitos e a realidade a que assistimos hoje.
Na sequência da vitória do “sim” no referendo, o aborto por opção da mulher até às dez semanas de gestação foi não apenas despenalizado (como decorria claramente da pergunta), mas também legalizado, isto é, passou a ser realizado com colaboração direta ou indireta do Estado, em estabelecimentos de saúde públicos ou legalmente autorizados (como estava subjacente à pergunta, embora de forma pouco clara e geradora de alguns equívocos).
Embora o resultado do referendo não seja juridicamente vinculativo, compreende-se, no plano político, que só um novo referendo possa inverter o regime de legalização do aborto. Esse referendo será tão legítimo como o anterior, que se sucedeu a um outro com um resultado oposto. Em democracia não há leis irreversíveis, nem tem sentido que a suposta irreversibilidade só opere num sentido.
Mas a regulamentação entretanto aprovada e legislação conexa conduziram a uma situação que vai muito para além do que decorreria do resultado desse referendo. O aborto entre nós hoje pode ser, sempre e em qualquer circunstância, gratuito e financiado pelo Serviço Nacional de Saúde, isento de taxas moderadoras mesmo na ausência de carências económicas que possam justificar tal isenção. São devidas taxas moderadoras em alguns cuidados de saúde que não resultam de um opção e para os quais não existem alternativas, mas verifica-se essa isenção em caso de aborto (que nem será um cuidado de saúde) por opção da mulher e para o qual nunca deixará de haver alternativas. Por outro lado, vários aspetos dos regimes de faltas e licenças laborais e de apoios sociais equiparam o aborto ao nascimento.
Neste quadro, é difícil afirmar que, contra o que propugnavam muitos partidários do “sim” no referendo de 2007, o aborto não é fomentado, promovido e incentivado pelo Estado. E não pode dizer-se que isso decorre do resultado desse referendo. Nele não se votou o completo financiamento pelo Estado da prática do aborto, nem que esta prática fosse de algum modo fomentada, promovida e incentivada pelo Estado.
As consequências deste regime estão à vista. Aproximadamente, uma em cada cinco gravidezes termina em aborto voluntário, sendo que um quarto destes corresponde a repetições. Embora o número absoluto tenha descido ligeiramente, a proporção entre abortos e nascimentos (cujo número absoluto ainda desce mais) vai subindo de ano para ano.
Há quem afirme a sua satisfação por o número de abortos estar “contido” e de acordo com a média europeia. Mas seria escandaloso um raciocínio tão conformista em relação a qualquer outra causa de morte, até mais difícil de evitar, como as que resultam de acidentes de viação ou de trabalho. Ninguém ficaria satisfeito por estar “contido” o número desses acidentes.
Para reduzir a gravidade destas consequências, e para de outros modos tutelar o direito a nascer e apoiar a maternidade e a paternidade, surgiu a iniciativa legislativa de cidadãos relativa à Lei de apoio à maternidade e à paternidade - do direito a nascer (www.pelodireitoanascer.org), que, nos termos da Lei nº 17/2003, de 4 de junho, pretende recolher assinaturas em ordem à apresentação e discussão dessa Lei no Parlamento.
A lei proposta pretende o reconhecimento do direito a nascer e do nascituro como membro do agregado familiar (designadamente para efeitos fiscais), a atribuição de licenças de maternidade e paternidade a profissionais estagiários e a trabalhadores independentes, o fim do financiamento integral (e fora de situações de carência económica) da prática do aborto pelo Serviço Nacional de Saúde, o fim da equiparação do aborto ao nascimento para efeito de apoios socias e faltas e licenças laborais, a promoção do apoio à grávida pelo pai, o apoio à remoção de obstáculos à assunção da gravidez (designadamente quando esses obstáculos resultem de violações de direitos fundamentais e laborais), a garantia do consentimento informado da mulher que pratica o aborto e o reforço do estatuto do objetor de consciência.
Os principais proponentes não escondem que estiveram, convictamente, do lado do “não” no referendo de 2007. Mas entendem que as suas propostas podem recolher muitas adesões de quem esteve do lado do “sim” e que então afirmou que não aceitava que o Estado fomentasse, promovesse ou incentivasse o aborto.  
Pedro Vaz Patto
Juiz

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