quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O valor da ágape

A reciprocidade é a lei de ouro da socialidade humana. Mais do que qualquer outra palavra – como sejam indignação, vingança ou intermináveis ações em tribunal – a reciprocidade traduz muito melhor a gramática fundamental da sociedade. O ADN do animal político é uma hélice que entrelaça dar e receber. Mesmo o amor humano é essencialmente uma questão de reciprocidade desde o primeiro instante ao último, em que, muitas vezes, se deixa esta terra apertando a mão de alguém que se ama; ou, se ausente, apertando-a dentro com as últimas energias da mente e do coração. Esta dimensão de reciprocidade do amor, com a qual se ama quem nos ama, foi expressa de vários modos e com muitas palavras pelas diferentes culturas.

Na Grécia as mais conhecidas eram eros e philia, duas formas de amor diversas, mas que têm em comum a reciprocidade, a necessidade fundamental da resposta do outro. O eros é uma reciprocidade direta, biunívoca, exclusiva, na qual o outro é amado porque nos preenche uma indigência, nos sacia, reacendendo um desejo vital. Na philia grega (que se assemelha ao que hoje chamamos amizade), a reciprocidade é mais elaborada: tolera-se a falta de resposta do outro, não se fazem sempre contas de dar e haver, e pode-se perdoar muitas vezes. É por isso que, enquanto o eros não é uma virtude, a philia pode sê-lo, porque requer fidelidade ao amigo que, de tempos a tempos, trai ou não responde ao amor. Mas o amor–philianão é um amor “incondicional”, já que termina quando o outro ou outra me faz entender com a sua não–reciprocidade que já não quer ser meu amigo.

O eros e a philia são essenciais e esplêndidos para toda a vida boa, mas não bastam. A pessoa é grande porque não lhe basta a já grande reciprocidade; quer o infinito. Assim, a um certo ponto da história, quando o tempo se tornou maduro, nasceu a necessidade de uma outra palavra para dizer uma dimensão do amor não limitada naquelas duas semânticas do amor, já ricas e elevadas. Esta nova palavra foi agape, não inteiramente inédita no vocabulário grego, mas novos foram o uso e o significado que lhe foi atribuído por "aqueles da via", o primeiro (belíssimo) nome dos cristãos. Mas o agape não foi uma invenção; foi a revelação de uma dimensão presente, em potência, no ser de toda a pessoa, mesmo quando sepultada e à espera de alguém que lhe diga “vem para fora”.
O agape não é uma forma de amor que começa quando terminam as outras, não é o não–eros ou a não–philia, porque é a sua presença que torna pleno e maduro todo o amor. Porque é o agape que doa ao amor humano aquela dimensão de gratuidade que não é garantida pela philia, e muito menos pelo eros; e que, abrindo-as, cumpre (assim) todas as virtudes, que na sua ausência não passam de subtil egoísmo. Também por esta razão quando os latinos traduziram o agape, escolheram charitas, que nos primeiros tempos se escrevia com h, uma letra que é tudo menos muda, porque dizia muitas coisas. Para começar, dizia que aquela charitas não era nem amor nem amicitia, era algo diverso. Depois, que aquela charitas já não era acaritas dos mercadores romanos, que a usavam para exprimir o valor dos bens (o que custa muito, que é “caro”). Mas aquele h queria também recordar que charitasreportava ainda a uma outra grande palavra grega: charis, graça, gratuidade (”Ave Maria, cheia de charis”). Não existeagape sem charis, nem charis sem agape. Então, a philiapode perdoar até sete vezes, o agape até setenta vezes sete; a philia doa a túnica, o agape doa também a capa; aphilia percorre uma milha com o amigo, o agape duas, e fá-lo também com o não–amigo. O eros suporta, espera, cobre pouco; a philia cobre, suporta, espera muito; o ágape espera, cobre e suporta tudo.

A forma de amor do ágape é também uma grande força de ação e de mudança económica e civil. Todas as vezes que uma pessoa age para o bem, e encontra na ação mesma e dentro de si recursos para andar para diante mesmo sem reciprocidade, entra em ação o ágape. O ágape é o amor típico dos fundadores, os iniciadores de um movimento, de uma cooperativa, que não podem contar com a reciprocidade dos outros, e cuja ação exige fortaleza e perseverança em longos períodos de solidão. O ágape não condiciona a escolha de amar à resposta do outro mas, quando tal resposta falta, sofre porque o ágape é pleno na reciprocidade («dou-vos um mandamento novo: amai-vos!»); mas não fica incomodado a ponto de interromper o seu amor não amado.
A plenitude da reciprocidade agápica exprime-se também numa relação ternária: A doa-se a B, e B doa-se a C; uma transitividade do ágape que não está presente nem naphilia, nem, ainda menos, no eros. Aliás, esta dimensão de “ternariedade” e de abertura é essencial para que se dê ágape. Até mesmo o amor materno e paterno para com um filho não seria agápico, e portanto maduro e pleno, se se esgotasse na relação A =» B, B =» A, sem a dimensão B =» C …, que ultrapassa as tentações de amor incestuoso ou narcisista. Esta necessidade de reciprocidade, o avançar ainda que não exista resposta, tornam o agape uma experiência relacional simultaneamente vulnerável e fértil. O ágape é uma ferida fecundíssima. É o ágape que transforma as comunidades em lugares acolhedoras e inclusivas, com portas escancaradas e que nunca se fecham, que desmonta hierarquias sacrais, ordens e castas, e toda a tentação de poder.
O ágape, além disso, é essencial para todo o Bem comum, porque conhece também um tipo de perdão capaz de anular o mal recebido. Quem quer que tenha sido vítima do mal, de qualquer mal, sabe que esse mal feito e recebido não pode ser plenamente compensado ou reparado com penas e indemnizações civis. Continua a operar, é uma ferida que permanece; a menos que um dia se encontre com o perdão do agape que, diferentemente do perdão do eros e da philia, tem a capacidade de sanar todas as feridas, ainda que mortais e de as transformar na aurora de uma ressurreição.

Existe, porém, uma tese que atravessou a história da nossa cultura. O ágape – diz-se – não pode ser uma forma de amor civil porque, devido à sua vulnerabilidade, tal não seria prudente. Poderá ser vivida apenas na vida familiar, espiritual, talvez no voluntariado; mas na praça pública e nas empresas teremos que nos contentar apenas com os registos do eros (incentivos) e, na melhor hipótese, daphilia. Uma tese muito radicada, porque se baseia sobre a evidência histórica de muitíssimas experiências nascidas do ágape que retrocederam depois para mera hierarquia ou comunitarismo.
É a história de tantas comunidades que começaram com o ágape e que diante das primeiras feridas se transformaram em sistemas muito hierárquicos e formalistas. Ou experiências que nasceram abertas e inclusivas e que, após os primeiros fracassos, fecharam as portas expulsando os diversos. A história é também o repetir destes “retrocessos” que, porém, não reduzem o valor civil do ágape e que deveria impelir-nos a introduzir mais ágape, não a retirá-lo, na política, nas empresas, no trabalho. Porque sempre que o ágape surge na história humana – mesmo se por pouco, pouquíssimo, tempo – não deixa nunca o mundo como estava. Eleva para sempre a temperatura do humano, crava um novo prego na rocha, e quem amanhã retomar a escalada partirá um metro, ou centímetro, mais acima.

Nenhuma gota de ágape se perde na terra. O ágape abre o horizonte de possibilidades de bem do humano, é o fermento e o sal de todo o bom pão. O mundo não morre, e a vida recomeça cada manhã, porque existem pessoas capazes de ágape: «Agora existem três coisas: fé, esperança, e ágape. A maior de todas é o ágape».
 
Luigino Bruni
In Avvenire

Sem comentários: