Neste últimos anos, o jornal «Público» deu voz a repetidos apelos em favor da eutanásia, num total de muitas dezenas de artigos de opinião. Há dois anos, enviei um artigo de sinal contrário, alertando para as terríveis consequências deste projecto: a eutanásia atraiçoa o princípio fundamental da vida social, o princípio de que não há vidas descartáveis. O texto, que copio neste post, apareceu como artigo de opinião no jornal «Público» de 22 de Julho de 2013. A Prof. Laura Ferreira dos Santos respondeu no «Público» de 29 de Julho. O «Público» aceitou um novo artigo meu, a 12 de Agosto, que transcrevo no post seguinte deste blogue («A democracia baseia-se numa opinião facultativa sobre a dignidade humana»). A resposta da Prof. Laura Ferreira dos Santos saiu na edição de 19 de Agosto.
A democracia assenta em chão
firme,
não depende de uma mera opinião
(Artigo de opinião no jornal «Público» de 22 de Julho de 2013)
Cada vez que este
jornal publica, com uma certa regularidade, os artigos de Laura Ferreira dos
Santos a favor da eutanásia, fico perplexo. Muito havia a dizer, mas vou debater
apenas o argumento da liberdade e da tolerância em abono da eutanásia (por
exemplo, no artigo de 6 de Agosto de 2011).
Quando se diz que
uma sociedade tolerante deve proporcionar o homicídio assistido a quem o pedir,
invertem-se os dados da questão, porque isso não é um pedido de tolerância mas de
colaboração: os defensores da eutanásia pretendem obrigar-nos a satisfazer o
desejo de quem quer ser morto. Seria mais razoável que, em nome da tolerância,
nos deixassem em paz.
Nos artigos referidos
há uma objecção interessante, que aceito, à parte um pequeno sofisma: defender
a inviolabilidade da vida humana equivale a impor uma determinada perspectiva
sobre a verdade, excluindo outras. De facto, quando a sociedade toma posição em
defesa da dignidade humana assume como verdade que o ser humano tem um valor
intrínseco, não sujeito a transacção. No entanto, isso não é uma «determinada
perspectiva sobre a verdade», é a própria verdade. Aliás, é um elemento de verdade
absolutamente fundamental, sobre o qual assenta uma sociedade que se queira
justa, livre e tolerante.
Uma sociedade
tolerante não é aquela que aceita tudo. Não pode aceitar a guerra da Líbia, a instabilidade
do Iraque, ou a violência da China... não aceita o inaceitável. Não derruba os
pilares-base da vida social, nomeadamente o princípio de que a vida humana é
inviolável. Esta verdade não é negociável, numa sociedade digna. Não é uma perspectiva
acerca da verdade, que estejamos dispostos a trocar por qualquer outra.
Colaborar num
homicídio, a pedido da vítima ou com qualquer outro pretexto, é contradizer a
verdade fundacional de uma sociedade democrática e solidária. Por isso, introduzir
a eutanásia é uma subversão tão grave da ordem social, em linha com aquelas
contradições do slogan do Ministério
da Verdade do inferno orwelliano: «Guerra é paz; liberdade é escravidão;
ignorância é força».
Qualquer ordenamento
jurídico, por mais bárbaro que seja, reconhece o valor de algumas vidas humanas, por razões de família, de dinheiro, ou de
poder. A inovação característica da democracia é proclamar de que todas as pessoas, sem excepção, merecem
esse respeito e de modo absoluto. A democracia não se fundamenta na afirmação
de que todos têm êxito nos negócios, ou de que todos são saudáveis, ou têm
notoriedade social. Nem sequer importa o que «têm», mas o que «são». A verdade fundacional
da democracia é que o ser humano, pelo simples facto de o ser, possui uma
respeitabilidade intocável.
O ponto de
partida da democracia é que esta verdade ética não é uma opinião entre outras,
mas uma verdade absoluta. No dia em que uma vida humana seja dispensável,
quebrou-se o princípio e a vida humana passou a ser um valor relativo. Se uma
sociedade aceitar que algumas pessoas sejam mortas (com um critério ou outro, o
critério pouco importa), ninguém está a salvo, porque nenhum critério
resvaladiço subsiste depois de se derrubar o princípio de que a vida humana é
inviolável. Quem revogar este princípio intransponível não espere encontrar
noutro lugar a justificação ética para uma democracia solidária.
Embora neste
assunto da eutanásia esteja em desacordo com a minha colega da Universidade do
Minho, isso não quer dizer que não tenha muita consideração por ela e não
estejamos de acordo noutros temas.
José Maria C. S.
André
(Prof. do IST)
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