Numa primeira evocação,
tempo de graça significa tempo não pago, gratuito portanto. Trata-se de uma
aceção que embora mais primária, valerá a pena explorar, até porque, cada vez
mais, só em parte é verdadeira.
De
facto, já lá vai o tempo em que o lazer era predominantemente gratuito em
termos económicos ou, talvez melhor dito, já lá vai o tempo em que não se
tomava consciência dos encargos que o lazer acarreta. De qualquer forma, o
desenvolvimento das indústrias da cultura e a cada vez mais intensa
estruturação empresarial e económica, até do próprio desporto e de tantas
outras atividades associadas aos tempos livres, fazem com que mesmo a pessoa
mais distraída quanto às suas contas, tome consciência dos por vezes tremendos
encargos do tempo livre. Não será portanto por esta razão que valerá a pena
chamar ao tempo livre, tempo de graça
Será
tempo de graça porque dele não esperamos contrapartida? Valerá a pena conotá-lo
com a gratuidade, não tanto por não ter contrapartida, mas por não ser avaliado
na nossa quotidianidade com ratios económicos, por não ser remunerado e por dele não
esperarmos vantagens padronizáveis em termos materiais. Mesmo numa sociedade
tão monetarizada como a nossa, parece que afinal nem todo "o tempo é
dinheiro", pelo menos para quem o sabe fruir. É que, para que todo o tempo
renda, é fundamental que nem todo o tempo tenha de ser dinheiro.
(…)
Hoje, talvez como
quase sempre, embora com critérios e escalas de medida com natureza diferente,
estas são duas faces da vivência do tempo.
Uma é a face fortemente
condicionada de modo explícito, que dá os frutos mais imediatos,
imprescindíveis para a sobrevivência, tempo das atividades mais terra a terra,
por mais complexas que sejam. Nesta face esperamos contrapartidas claras e
explícitas.
A
outra face é a do tempo que não se mede, a do tempo que se gasta (até porque no
outro tempo se entesourou), cujos frutos hão de chegar sem se saber exatamente
nem quais, nem onde, nem quando; tempo gratuito em que nos damos sem cálculo,
tempo de certo modo mais exigente porque sem limites de espaço e de tempo. Mas
é, porventura mais ainda, tempo com sentido.
Este
tempo gratuito é por excelência o tempo da relação, daquela que nos liga
profundamente com as pessoas, com a realidade no tempo e para além do tempo,
que nos liga no espaço e para além do espaço, aqui e agora e libertos de cada
momento e lugar.
(…)
Conversar
e ser conversado, ter interesses, saber que é bom ser capaz de se deslumbrar,
de se dedicar, de conquistar a persistência, de cultivar a disponibilidade, de
ganhar confiança em si "próprio e manter a confiança nos outros apesar das
desilusões, que é bom saber esperar sem desanimar, saber como é bom ousar
comparar-se com os outros sem desesperar, são outros tantos pressupostos da
gratuidade que se aprendem à própria custa, mas que dificilmente se aprendem
sozinho ou só com gente da mesma idade, sem adultos disponíveis capazes de
acolher, aguentar, incitar e também de saber estar.
(…)
Bernard Valade, num
artigo sobre cultura do Tratado de Sociologia de Boudon relembra como para os
gregos apaideia, através da qual se preparavam
as crianças para se tornarem homens capazes de ser alguém, pressupunha a
disciplina. Di-lo quase nos mesmos termos em que os mais idosos suíços a
reclamavam, na palavra de D'Epinay.
Tempo
livre, tempo de graça, deve ser um tempo autodisciplinado que mantenha viva a
capacidade de projeto ao longo de toda a vida.
Não
é que não se possam fruir, também na idade adulta, dias sem horas para nada,
vivendo ao sabor da fantasia. Estes tempos podem constituir o contraponto
necessário à asfixia do dia a dia, mas não devem constituir a única alternativa
em qualquer género de vida.
(…)
Para além dos interesses
esporádicos, os adultos interessam-se em construir a sua casa e em obter um
conjunto de bens tidos como preciosos, tais como carro, mobílias e outros
sinais de posição social que lhes dão segurança e os fecham num pequeno mundo
de privacidade. Viajam também, para obterem recordações que decorem o seu mundo
privado.
Este
leque muito fechado de interesses dá uma segurança que com o andar dos anos se
torna precocemente asfixiante. Não deixa de ser muito revelador verificar o elevado
número sobretudo de homens que, após os quarenta anos, se enclausura neste seu
mundo privado, e que antes de qualquer reforma se defende no seu
"território" de que é dono e senhor, vendo como particularmente
hostil a vida ao seu redor.
Sem
prejuízo dos espaços de privacidade, os adultos precisam assim de se tornarem
mais capazes de disponibilidade para o serviço dos outros e para a permuta
extraprofissional sem a reduzirem ao circuito das compras e dos espaços
comerciais.
(…)
Viver
o tempo, também em gratuidade, é fundamental para reconquistar a confiança na
vida e nos outros, sem estar sempre a correr atrás das oportunidades, com tanto
receio de perder a primeira oportunidade que se luta já pelas oportunidades
precoces, antes de tempo, pois assim alguém se sente mais seguro.
(…)
É o
próprio dia a dia que precisa de tornar-se histórico e eterno em simultâneo,
ajuízável por nós de modo relativo, mas suscetível de ser visto por outros
olhos, por critérios que nos escapam.
Fernando
Jorge Micael Pereira
In Communio (1999/1)
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