sexta-feira, 27 de julho de 2012

O que fazer do tempo ?


Numa primeira evocação, tempo de graça significa tempo não pago, gratuito portanto. Trata-se de uma aceção que embora mais primária, valerá a pena explorar, até porque, cada vez mais, só em parte é verdadeira.

De facto, já lá vai o tempo em que o lazer era predominantemente gratuito em termos económicos ou, talvez melhor dito, já lá vai o tempo em que não se tomava consciência dos encargos que o lazer acarreta. De qualquer forma, o desenvolvimento das indústrias da cultura e a cada vez mais intensa estruturação empresarial e económica, até do próprio desporto e de tantas outras atividades associadas aos tempos livres, fazem com que mesmo a pessoa mais distraída quanto às suas contas, tome consciência dos por vezes tremendos encargos do tempo livre. Não será portanto por esta razão que valerá a pena chamar ao tempo livre, tempo de graça



Será tempo de graça porque dele não esperamos contrapartida? Valerá a pena conotá-lo com a gratuidade, não tanto por não ter contrapartida, mas por não ser avaliado na nossa quotidianidade com ratios económicos, por não ser remunerado e por dele não esperarmos vantagens padronizáveis em termos materiais. Mesmo numa sociedade tão monetarizada como a nossa, parece que afinal nem todo "o tempo é dinheiro", pelo menos para quem o sabe fruir. É que, para que todo o tempo renda, é fundamental que nem todo o tempo tenha de ser dinheiro.

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 Hoje, talvez como quase sempre, embora com critérios e escalas de medida com natureza diferente, estas são duas faces da vivência do tempo.

Uma é a face fortemente condicionada de modo explícito, que dá os frutos mais imediatos, imprescindíveis para a sobrevivência, tempo das atividades mais terra a terra, por mais complexas que sejam. Nesta face esperamos contrapartidas claras e explícitas.

A outra face é a do tempo que não se mede, a do tempo que se gasta (até porque no outro tempo se entesourou), cujos frutos hão de chegar sem se saber exatamente nem quais, nem onde, nem quando; tempo gratuito em que nos damos sem cálculo, tempo de certo modo mais exigente porque sem limites de espaço e de tempo. Mas é, porventura mais ainda, tempo com sentido.

Este tempo gratuito é por excelência o tempo da relação, daquela que nos liga profundamente com as pessoas, com a realidade no tempo e para além do tempo, que nos liga no espaço e para além do espaço, aqui e agora e libertos de cada momento e lugar.

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Conversar e ser conversado, ter interesses, saber que é bom ser capaz de se deslumbrar, de se dedicar, de conquistar a persistência, de cultivar a disponibilidade, de ganhar confiança em si "próprio e manter a confiança nos outros apesar das desilusões, que é bom saber esperar sem desanimar, saber como é bom ousar comparar-se com os outros sem desesperar, são outros tantos pressupostos da gratuidade que se aprendem à própria custa, mas que dificilmente se aprendem sozinho ou só com gente da mesma idade, sem adultos disponíveis capazes de acolher, aguentar, incitar e também de saber estar.

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Bernard Valade, num artigo sobre cultura do Tratado de Sociologia de Boudon relembra como para os gregos apaideia, através da qual se preparavam as crianças para se tornarem homens capazes de ser alguém, pressupunha a disciplina. Di-lo quase nos mesmos termos em que os mais idosos suíços a reclamavam, na palavra de D'Epinay.

Tempo livre, tempo de graça, deve ser um tempo autodisciplinado que mantenha viva a capacidade de projeto ao longo de toda a vida.

Não é que não se possam fruir, também na idade adulta, dias sem horas para nada, vivendo ao sabor da fantasia. Estes tempos podem constituir o contraponto necessário à asfixia do dia a dia, mas não devem constituir a única alternativa em qualquer género de vida.

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Para além dos interesses esporádicos, os adultos interessam-se em construir a sua casa e em obter um conjunto de bens tidos como preciosos, tais como carro, mobílias e outros sinais de posição social que lhes dão segurança e os fecham num pequeno mundo de privacidade. Viajam também, para obterem recordações que decorem o seu mundo privado.

Este leque muito fechado de interesses dá uma segurança que com o andar dos anos se torna precocemente asfixiante. Não deixa de ser muito revelador verificar o elevado número sobretudo de homens que, após os quarenta anos, se enclausura neste seu mundo privado, e que antes de qualquer reforma se defende no seu "território" de que é dono e senhor, vendo como particularmente hostil a vida ao seu redor.



Sem prejuízo dos espaços de privacidade, os adultos precisam assim de se tornarem mais capazes de disponibilidade para o serviço dos outros e para a permuta extraprofissional sem a reduzirem ao circuito das compras e dos espaços comerciais.

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Viver o tempo, também em gratuidade, é fundamental para reconquistar a confiança na vida e nos outros, sem estar sempre a correr atrás das oportunidades, com tanto receio de perder a primeira oportunidade que se luta já pelas oportunidades precoces, antes de tempo, pois assim alguém se sente mais seguro.

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É o próprio dia a dia que precisa de tornar-se histórico e eterno em simultâneo, ajuízável por nós de modo relativo, mas suscetível de ser visto por outros olhos, por critérios que nos escapam.

Fernando Jorge Micael Pereira
In Communio (1999/1)

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