quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Anestesiados

Garanto que me esforcei. Andei mesmo às voltas para tentar escrever um texto optimista para fechar o ano.

Mas com nuvens tão carregadas no horizonte, um balanço realista não pode ignorar a incerteza que o presente projecta sobre o futuro. Não penso apenas na crise económica. Sobre isso haverá outros a escrever com mais propriedade. Penso no ambiente político que vivemos. No sentimento de beco sem saída. Na apatia e desistência que vejo à minha volta.

Há um efeito secundário dos escândalos políticos dos últimos tempos. Talvez mais subtil mas não menos perigoso. Semelhante ao que acontece com as catástrofes longínquas que as notícias nos trazem todos os dias: banalizam-se e tornamo-nos indiferentes. Deixamos de reagir a mais um "caso político", tal como nos passa ao lado uma nova tragédia no Uzbequistão.

Com a abundância de "casos" mal explicados, envolvendo membros do Governo e o próprio primeiro-ministro, a desconfiança entranhou-se na vida política portuguesa. Casos como o Freeport ou Face oculta, episódios como a licenciatura ou as casas da Guarda banalizaram-se. Como estão longe os tempos em que uma simples dúvida sobre a sisa ou uma manta de avião eram suficientes para a demissão de um ministro. Perdemos sensibilidade. Descemos o nosso padrão de exigência.

Fomo-nos tristemente habituando à promiscuidade entre interesses públicos e privados. Vulgarizou-se a ideia de que um partido pode colocar os "seus" em certos lugares nas empresas privadas (PT, BCP, Cimpor) para depois os utilizar como peões de uma estratégia de poder e controlo sobre os media e a sociedade em geral.

Claro que sempre se disse mal dos políticos pelas esquinas e cafés. A diferença é que agora ouvimos o mesmo discurso pelas alcatifas bem cuidadas dos escritórios, bancos e universidades. Generalizou-se entre as elites uma ideia negativa sobre a política. Perdeu-se a noção de serviço público.

Recordo-me de ouvir, na vetusta Faculdade de Direito, elogios aos que colaboravam em partidos ou gabinetes. Hoje, pelos mesmos corredores, vejo desdém por aqueles que fazem o mesmo. Os melhores, que podem escolher, preferem uma carreira "privada", porque a política, mesmo uma colaboração técnica num gabinete, é vista como uma mancha no currículo.

A vida vai-se fechando num círculo cada vez mais privado. As pessoas cruzaram os braços, estão indiferentes, anestesiadas. Cada um a tratar da sua vidinha. A pensar na carreira. A ganhar dinheiro. O resto não vale a pena, nem justifica "sujar as mãos". Com a crise sobra ainda menos tempo para a vida pública.

A política perdeu espaço, basta ver o alinhamento dos telejornais. E o pouco espaço que resta é para falar dos "casos". Não se vai a fundo acerca de nada. Esta despolitização, este fechamento numa lógica privada é preocupante. Faz lembrar o pior do salazarismo.

A política encolheu e perdeu qualidade. Mais do que a crise económica, este será porventura o pior legado dos governos Sócrates: a apatia generalizada, a decadência da nossa vida pública de que vamos demorar a recuperar.

Paulo Marcelo. Jurista

Fonte: Económico

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