quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A democracia baseia-se numa opinião facultativa sobre a dignidade humana?

Este texto, saído no «Público» de 12 de Agosto de 2013, responde ao artigo da Prof. Laura Ferreira dos Santos de 29 de Julho, que por sua vez, vinha na secuência de um artigo meu de 22 de Julho (ver post anterior deste blogue, «A democracia assenta em chão firme, não depende de uma mera opinião»). Posteriormente, a Prof. Laura Ferreira dos Santos respondeu ao texto que transcrevo abaixo na edição de 19 de Agosto do «Público».
 
 
A democracia baseia-se numa opinião facultativa sobre a dignidade humana?
(Artigo de opinião no jornal «Público» de 12 de Agosto de 2013)


A revista Ingenium divulgou recentemente um episódio passado com o grande matemático Kurt Gödel, a quem devemos os teoremas da incompletude, ou «teoremas de Gödel». A história tem a ver com uma resposta desconcertante à pergunta: «Podem os EUA tornar-se uma ditadura?»[1].

Nos anos do regime nazi, Gödel mudou-se da sua Áustria natal para os Estados Unidos. Trataram-no como um dos maiores matemáticos do século, deram-lhe as melhores condições de investigação e Gödel decidiu naturalizar-se americano. A lei exigia apresentar duas testemunhas abonatórias e mostrar um conhecimento mínimo do país. Simples: Gödel pediu a dois colegas, Albert Einstein e Oskar Morgenstern que o acompanhassem como testemunhas. Mas, mesmo com dois ídolos da cultura norte-americana, Gödel, com o seu vício da lógica, ia deitando tudo a perder. Encarou a formalidade burocrática tão a sério que se atirou a um estudo, meticuloso e exaustivo, da cultura e das leis dos EUA. Ao fim de alguns meses de investigação, deu-se conta de que a democracia americana era vulnerável! De forma perfeitamente constitucional, podia resvalar para uma ditadura, como tinha acontecido (com algum toque de ilegalidade) com Hitler, na Alemanha. Einstein e Morgenstern ficaram horrorizados: nem penses em dizer isso ao juiz! No dia da audiência, foram buscar Gödel de carro e tentaram a todo o custo distrai-lo. De início, tudo corria bem. Não é qualquer imigrante que apresenta Morgenstern e Einstein como testemunhas! Depois, vieram as perguntas ao próprio:
− Mr. Gödel, de onde é natural?
− Da Áustria.
− Que tipo de Governo tinham na Áustria?
− Era uma república, mas a Constituição era tal que acabou por se transformar numa ditadura.
− É uma pena! Felizmente, isso é impossível neste país.
− Isso é que era bom! Pode acontecer e posso demonstrá-lo.
O sangue gelou nas veias de Einstein e Morgenstern. O tema melindroso! Felizmente, o juiz foi suficientemente inteligente para perceber e comentou apenas, «oh, meu Deus, não vamos entrar por aí», dando o exame por concluído.

Gödel conseguiu naturalizar-se. Mas o perigo existe mesmo, porque a letra da lei deixa de proteger uma sociedade que coloca a defesa da vida humana ao nível de uma opinião facultativa. Quando a firmeza deste princípio esmorece, as palavras significam tudo e o seu contrário. Por isso a democracia colapsou em «O Triunfo dos Porcos» (Animal Farm), de George Orwell, como ele explica num artigo publicado no Horizon: «As palavras democracia, socialismo, liberdade, patriótico, realista, justiça têm, cada uma, vários significados irreconciliáveis entre si. (...) Quase todos acham que chamar democrático a um país é elogiá-lo: consequentemente os defensores de qualquer tipo de regime reivindicam que ele é uma democracia (...). As palavras deste tipo são usadas de forma conscientemente desonesta. Quer dizer, quem as usa tem a sua definição privada, mas deixa que o ouvinte pense que quer dizer outra coisa, completamente diferente» («Politics and the English Language», Horizon, Abril 1946).

Geralmente a intenção não é retorcida, como Orwell suspeita, mas ele tem razão quando alerta para o perigo de cairmos na ambiguidade semântica, mesmo inadvertidamente. Por isso me preocupa que a Prof. Laura Ferreira dos Santos («Público», 28-7-2013) distinga entre vida biográfica e simples vida. Num caso, pode matar-se, no outro não. Rejeita o homicídio, mas apoia quem faz morrer, como acto de misericórdia.

Concordo com Laura Ferreira dos Santos quando escreve: «defendo a inviolabilidade da vida humana: as sociedades verdadeiramente democráticas não podem permitir o assassinato». O problema é o que acrescenta: «há duas hermenêuticas distintas para o mesmo valor partilhado, que é o da inviolabilidade da vida humana». Segundo uma interpretação, a inviolabilidade da vida humana significa que não se pode matar, a outra considera «um grave desrespeito (e crime)» opor-se à eutanásia, porque rejeitar a eutanásia é um atentado «contra a vida biológica e biográfica».

Assim, não há Constituição que resista: pode decretar que todos são iguais em direitos, ou que todos têm direito à vida, ou que a sociedade assenta na solidariedade entre todos. Laura Ferreira dos Santos responde: «a eutanásia não é assassinato, é solidariedade».

Estamos de acordo em que a democracia assenta num mínimo de convicções. Um mínimo, sim. Mas não menos do que isso.

José Maria C. S. André
(Prof. do IST)


[1] Jorge Buescu, «Podem os EUA tornar-se uma ditadura?», Ingenium 131 − Setembro/Outubro 2012.

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