quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Uma crise com lições muito urgentes


Multiplicam-se as explicações sobre as raízes da crise financeira, económica, social e de valores que vivemos. Não há uniformidade nos argumentos e nas razões, no entanto parece não haver dúvidas sobre alguns factos tão simples como perturbadores.

O consumismo tornou-se uma doença vertiginosa e perigosa. As sociedades da abundância julgaram poder perseguir um progresso ilimitado, com a ilusão de que tudo poderíamos consumir, sem cuidar da limitação dos recursos. A poupança foi desvalorizada, como se fosse possível investir sem criar uma base capaz de fazer face às necessidades de preparar o futuro e de criar condições para multiplicar a riqueza. O crédito fácil tornou-se uma perigosa armadilha em que muitos caíram, julgando que o dinheiro barato era um adquirido definitivamente. A especulação, a idolatria do mercado e as economias de casino pareceram tomar o lugar da criação, do trabalho e do esforço. A circulação do capital financeiro gerou a ideia de que a afluência de dinheiro, mesmo ilusória, poderia ser confundida com a geração de riqueza duradoura.

As gerações presentes começaram a gastar, assim, os recursos das gerações futuras — e a participar ativamente na destruição da natureza e do meio ambiente. E deste modo a economia perdeu a compreensão de que "o que tem mais valor é o que não tem preço" (na expressão clássica de François Perroux), assim como se desvalorizou um sentido ético da utilização dos recursos disponíveis e da sua afetação à satisfação de necessidades.

(...)

"A era do crédito fácil, a era de viver à base das dívidas e de gozar o momento, o carpe diem da economia terminou."

A crise é de sociedade, uma vez que afeta os vínculos entre as pessoas. E se quase todos têm a palavra solidariedade na boca, o certo é que há mil motivos para esquecê-la - em nome do individualismo atomístico, do egoísmo utilitarista e da ausência de reciprocidade. A gratuitidade é esquecida, e hoje volta à ordem do dia por ausência de meios. As pessoas são obrigadas por sobrevivência a não pensar tudo em razão do preço e da contrapartida.
(...)

Perante a crise do Estado providência e a ausência da Sociedade providência, impõe-se encontrar novas soluções que compreendam a distinção e a complementaridade, referida por Paul Ricoeur, entre sócio e próximo, sendo que o cidadão participa das duas qualidades.

Para o sócio e para o próximo é indispensável haver sentido de partilha e de entreajuda. Mas enquanto o sócio exige o dever geral de cooperação, o próximo obriga à responsabilidade especial inerente ao amor (ágape). 
(...)
"O binómio mercado-Estado corrói a sociabilidade, enquanto as formas solidárias, que encontram o seu melhor terreno na sociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade não existe, tal como não se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e, todavia, tanto o mercado como a política precisam de pessoas abertas ao dom recíproco." (Caritates in Veritate n. 39)

Oiçamos, de novo, Bento XVI: "O desenvolvimento é impossível sem homens retos, sem operadores económicos e homens políticos que sintam intensamente em suas consciências o apelo do bem comum. São necessárias tanto a preparação profissional como a coerência moral." (n. 71) .
(...) 
Patrick Artus e Marie-Paule Virard, no seu livro intitulado Globali-sation: le pire est à venir (La Découverte, 2008) afirmaram profeticamente, num momento em que o que hoje sentimos ainda não se manifestara: "O pior ainda está para vir, em resultado da conjugação de cinco características maiores da globalização: uma máquina inigualitária que mina os tecidos sociais e atiça as tensões protecionistas; um caldeirão que queima os recursos raros, encoraja as políticas de concentração e acelera o reaquecimento do planeta; uma máquina que inunda o mundo de liquidez e que encoraja a irresponsabilidade bancária; um casino onde se exprimem todos os excessos do capitalismo financeiro; uma centrifugadora que pode fazer explodir a Europa."

Hõlderlin ensinou-nos que "onde cresce o perigo, cresce também o que salva".
A globalização pode trazer-nos fatores positivos sobre os quais pode unir-se a humanidade no sentido da paz. A consciência de uma Terra-Pátria, de que nos fala Edgar Morin, é ainda marginal e disseminada. A globalização tecno-económica prevalece e contraria a emergência da sociedade--mundo que pode estar a ser lançada. A mundialização envolve, deste modo, o melhor e o pior, a emergência de um mundo novo e a autodestruição da humanidade. Daí a ideia de metamorfose, improvável mas possível, como alternativa à desintegração provável.

A natureza está cheia de exemplos de metamorfoses - a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de reconstrução autónoma. A noção de metamorfose é, assim, mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à conservação da vida e à herança das culturas.

(...) quando se refere que o Estado é hoje grande de mais, estamos a reivindicar mais iniciativas da sociedade.
O Estado-providência terá por isso que superar a crise atual com mais Sociedade-providência, com mais sentido comunitário.
Por isso, importa que a sobriedade seja praticada, em nome do desenvolvimento humano, da sustentabilidade e da proximidade das pessoas - pondo a eminente dignidade humana em primeiro lugar.

Estamos perante uma crise com lições muito urgentes.
Sobre Portugal, Gustavo Cardoso afirmou: "Portugal tem de ser um nó numa rede global de cultura, economia e política. Não lhe basta ser um pequeno país na Europa. Se assim for não teremos um futuro brilhante." Trata-se de combater a mediocridade, a periferia e a irrelevância. Mas, mais do que isso, importa que haja um projeto humano. 
(...)
 É esse o desafio." São necessárias tanto a preparação profissional como a coerência moral. Eis o que é inseparável. Temos de tirar lições dos erros, valorizando a experiência e a aprendizagem. À fragmentação temos de saber contrapor a mútua compreensão e o compromisso.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Presidente do Tribunal de Contas, presidente do Centro Nacional de Cultura 
In Communio 2012 (1)
12.09.12

Sem comentários: