Caminhar sem chão
Pode alguém, sem fé em Deus algum, ser, eventualmente, digno da eleição para uma alegada salvação? Felizmente, para todos, sim.
As nossas ações realizam-nos, no sentido estrito do termo: tornam real algo que era antes mera hipótese. A nossa vida é uma permanente e dinâmica construção do nosso ser, uma viagem que nos leva de um quase nada, com potencial, a algo bem concreto: um ser humano definido numa plenitude, absolutamente sua.
Os caminhos que escolhemos marcam a nossa existência, mas as nossas decisões fundamentam-se naquilo em que acreditamos, naquilo que confiamos ser a verdade. Ao limite, é sempre a fé que motiva para o bem... mas, muitas vezes, não conseguimos praticar o bem em que acreditamos porque escolhemos dar prioridade a outras vontades, apetites aparentemente mais agradáveis... a razões tão mais mundanas.
Não faz sentido que a fé seja o critério quando ela não se faz concreta.
Talvez na existência haja muitos caminhos errados e apenas um certo: o do amor. O egoísmo reveste-se de inúmeras formas. O amor, quando autêntico, é simples, perfeito e único.
Quando nos damos a alguém, numa palavra ou gesto, estamos a construir felicidade nessa pessoa. Colocamo-nos, de forma integral, ali. Nas suas mãos. E é quanto mais assim nos damos, quanto mais nos perdemos pelo nosso vizinho que, paradoxalmente, nos fazemos mais consistentes e valiosos, nos enchemos de uma alegria funda, tão funda que coabita bem até com tantas lágrimas de sofrimentos menos íntimos.
Fé é confiança. Viver tendo por certo o que é apenas uma espécie de promessa do possível, seguindo adiante mesmo sem compreender... aceitando cada coisa com um sorriso, fundo.
Uns acreditam que é nos egoísmos que encontrarão a felicidade e a paz, e lutam por isso... outros, não... estes, compreendem que é dando-se que se alcançam a si mesmos; que é amando que encontram o caminho da paz, aquele que permite que se seja feliz em qualquer lugar.
Amar é abdicar de si mesmo em favor do outro e implica cruas e duras consequências... duríssimas. Mas é o caminho certo... porque só esse faz, verdadeiramente, sentido. Por mais irracional que pareça. A nossa inteligência pode não compreender que a complexidade que julga ver é afinal apenas fruto dos seus próprios limites... pode não estar à altura de abarcar e abraçar a simplicidade de tudo.
Um homem é a fé de que for capaz. A dureza e o peso da tristeza que se abate sobre aquele que desespera chegam-lhe do vazio dos sonhos que deixou que se tornassem impossíveis, da preguiça do egoísmo que o paralisou e o levou à perda de si mesmo.
Só pelas ações concretas podemos alcançar o céu da existência, mas o caminho para se lá chegar passa por muitos pontos onde somos chamados a dar passos adiante por cima do nada, por onde não se vê chão... por onde não há chão.
Mas, o caminho certo é aquele onde, em paz funda, se é feliz em qualquer lugar...
Não é fácil. Nada. Mas valerá a pena, qualquer pena, por mais penosa que seja... As maiores dores são as que obrigam alguns homens a engrandecer-se para lhes fazer frente e seguir adiante... é de fraquezas que se faz a força.
Os sofrimentos filtram as vontades e os méritos... e, claro, nem todos se fazem dignos de ser felizes.
Por José Luís Nunes Martins
Fonte: "Jornal i"
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