sexta-feira, 29 de março de 2013

Perguntas&Respostas sobre ser pai e mãe



Nas histórias tradicionais o papel do pai é praticamente inexistente, porquê?
Porque o mundo sempre foi matriarcal. E os homens, repartidos pela necessidade de garantirem meios de subsistência e pelas suas omissões de pais, sempre se resignaram a um papel muito secundário na vida das crianças. Eram úteis para levar as bilhas do gás até ao terceiro andar. Eram recomendáveis para matar insectos repelentes. E para expulsar vendedores de enciclopédias intrometidos. Por isso, nas histórias, a ideia de um pai, atento ou brincalhão, não existia. Ou acha que, se existisse, a Carochinha ia para a janela fazer figuras tristes?
As mães também parecem ser sempre mulheres doentes ou que já morreram… deixando as madrastas em seu lugar.
As madrastas, depois das sogras, foram tendo um papel de extrema utilidade pública. E se fossem maldispostas melhor seria. Porque é à custa delas que a cotação das nossas mães é, invariavelmente, revista em alta. Mas as histórias falam, sobretudo, do lado abandónico dos pais, que foi aquilo que melhor os terá caracterizado, contra a vontade de todos, ao longo da História. Daí que entre falar de pais abandonantes, porque morriam precocemente ou porque iam abandonando, em vida, engolidos por todos os compromissos que não sabiam gerir, ou falar de ‘maus da fita’, as histórias sempre apostaram na coluna do segundo. Protegia, por um lado, a consciência da dor. E sempre funcionava como uma espécie de desculpa quando se tratava de arranjar um ‘mata-borrão’ para todos os males.
O pai, por exemplo na Branca de Neve ou na Cinderela, adora a filha, mas é enganado pela nova mulher, que consegue sempre dar-lhe a volta. Os homens são assim tão manipuláveis?
Os homens são, regra geral, excelentes pessoas. Mas levam a vida toda a fazer de filhos mais velhos das mulheres e, como os slogans na política, depois de se repetir, muitas vezes, que mal se ajeitam a estrelar um ovo, quando se trata de mudar uma fralda é o que se sabe. O mundo sempre jogou à italiana: as mulheres foram dando o meio campo ao pai e, regra geral, iam ganhando os campeonatos em contra-ataque. Para cúmulo, os homens foram ensinados a não chorar e a supor que aguentar os sentimentos seria um sinal de virilidade. Por isso mesmo hoje, quando se trata de dizerem ‘Amo-te Teresa!’, a Teresa nunca entende. Sofrem de iliteracia emocional. Sentem mas fintam as palavras. E o resultado é que, embora tenham coração e lágrimas, são… uns meninos.
E porque é que a história de amor é sempre entre o pai e a filha?
Porque, muitas vezes, há uma filha, na vida do pai, que parece ser a única mulher com quem ele se consegue entender. Ao contrário do filho, a quem o pai exige que seja um up grade de si próprio, sem grande margem para errar. E porque, feitas as contas, nas histórias – à excepção de O Rei Leão – o pai faz de compére. Nunca de primeira figura.
A vida real parece, até agora, aproximar-se muito das histórias tradicionais. Será que já estamos a mudar?
A diminuição da mortalidade perinatal, os contraceptivos (e a consequente diminuição da taxa de natalidade), a escolarização e o trabalho da mulher, trouxeram, no século XX, diferenças profundas à família. E, sobretudo, ao papel do pai. Que hoje é mais paritário do que alguma vez foi, em toda a História. Mudámos mais nos últimos 40 anos do que em todos os tempos até aqui. E, acredite, mais pai é melhor família.
Costuma dizer que todos os pais devem ser mães, o que é que quer dizer com isso?
É verdade que costumo dizer que a primeira função de uma pessoa é ser mãe. No sentido de ouvir com o coração e de traduzir em gestos de ternura aquilo que se sente. Um homem que não sabe ser mãe não é um homem: é um medricas. E isso jamais é aquilo que se deve esperar de um pai.
É importante para a futura relação da criança com o pai que ele esteja nas consultas durante a gravidez, veja as ecografias, assista ao parto?
Não, não é importante. É absolutamente indispensável. Porque também precisa de estar grávido e de se comover com a gravidez. E não é só por causa do bebé. Mas por tudo aquilo que compartilhar uma gravidez traz de amor ao pai e à mãe.
Há pouco tempo em Portugal, o obstetra Michel Odent disse que o pai não deve estar na sala de partos, porque perturba a imagem que tem da mulher, porque a sala de partos é um espaço de mulheres. Concorda?
Não. De todo. Michel Odent será um belíssimo tecnocrata da obstetrícia. Mas não é, seguramente, um bom clínico e um homem sensato.
Acha que os bebés muito pequeninos são sobretudo território das mães?
Acho que os filhos são um território fantástico para o contraditório dos pais. Para tudo aquilo que lhes traz sensatez, pluralidade e clarividência aos gestos. Os filhos serão mais filhos com melhores pais. E todos aprendemos a ser pais uns com os outros.
Porque é que há homens que sentem a chegada de um filho como um intruso e têm ciúmes – ou é história?
Porque muitos homens sentem na mulher a mãe que nunca tiveram. E rivalizam, pelo amuo, com um filho como se ele fosse uma espécie de irmão mais novo. Porque muitos homens se sentem traídos por uma gravidez para a qual se consideram empurrados com alguma má-fé. Porque muitos homens acham que um filho consegue ser muito do que o pai desistiu de ser, sem dar por isso. E isso acirra a raiva. Em relação a todos eles era importante que nunca nos esquecêssemos de que os mal-entendidos se resolvem guardando para ontem tudo aquilo que se pode dizer hoje.
Tradicionalmente o pai era aquele de quem se dizia «quando o teu pai chegar». O que é que acontece às famílias em que este é o modelo vigente?
A autoridade conquista-se pela bondade, pela sabedoria e pelo sentido de justiça. Por isso mesmo, as famílias em que o pai era a autoridade não seriam famílias. Mas um conluio de mal-entendidos em que o autoritarismo do pai ligava as pessoas pelo medo mas jamais pelos laços, pelos gestos, pelas convicções ou pelo sonho. Porque não há autoridade sem alteridade. A autoridade numa família não é do pai. É da mãe e do pai. E só assim é dos filhos e da família.
Hoje, muitos pais recusam o modelo de autoritarismo dos seus pais – correm o risco de não exercer autoridade e acabarem escravos de uns tiranos, que eles próprios criaram?
A autoridade é um exercício de bondade. Legitima-se com bons exemplos. O autoritarismo é um exercício discricionário. Consolida-se com maus exemplos, com intimidação e com boas intenções. Se hoje há pais que confundem autoridade e autoritarismo é porque ainda estarão presos às suas experiências infantis dolorosas onde os seus pais e os seus professores (por falta de legitimidade para exercerem, com sensatez e com firmeza, a autoridade) confundiram disciplina com lei, autoridade com autoritarismo.
Os pais ausentes – por vontade própria ou por imposição da mãe – dão origem a ‘filhos da mãe’? Com que consequências para a criança?
Trágicas. Porque alteridade e coerência de cuidados permitem partilhar gestos e responsabilidades, parentalidade e vida própria, cuidados personalizados e contraditório educativo.
No meu tempo as crianças, quando os outros as ameaçavam no recreio da escola, diziam: «Olha que chamo o meu pai que é polícia!» É bom sentir que se tem um pai que pode vir a correr defender-nos?
Um pai-herói é um pai forte. E presente. Independentemente da sua profissão. É uma força tranquila.
QUANDO O PAI É TRANSFORMADO EM ‘VISITA’
As estatísticas de divórcio indicam que o poder paternal é em 90% dos casos entregue à mãe. Como é que um pai que era próximo do seu filho, se sente quando o transformam em “visita”?
O direito de visitas como regra judicial, quando se trata de configurar as responsabilidades parentais do pai, sem que tenha cometido qualquer ilícito compaginável com o que a Lei configura como negligencia ou como maltrato dum filho, representa um limitação por identidade de género que um Tribunal e um Estado de Direito jamais deviam permitir. E se permitem, então é porque as mulheres e os homens que o toleram (e os tribunais que o promovem) são, realmente, rascas. Porque se demitem até do direito à indignação. Quando assim é um pai, que era próximo dum filho, sente-se como intruso na sua vida. E uma mãe, que tolera e se aproveita duma injustiça como essa, passa a ser, todos os dias em que o permite, menos mãe.
Que efeito tem este distanciamento forçado na vida mental dos filhos?
Primeiro, transforma uma decisão judicial, num maltrato, em que todos são coniventes. E, depois, há medida que o direito de visitas se perpetua, converte um maltrato num dano, em que todos são cúmplices. Escuso, portanto, de reafirmar que um distanciamento desses não é nem acto de parentalidade nem de justiça. É uma vergonha com a qual jamais devemos pactuar.
O número de incumprimentos dos acordos feitos em tribunal é enorme. Como acha que os tribunais deviam lidar com pais que não pagam a pensão, ou não visitam os filhos?
Privando-os, liminarmente, dos seus direitos. Quem não reconhece responsabilidades limita-se para os seus direitos.
Como deviam lidar com as mães que complicam e impedem a presença do pai na vida dos filhos?
Devia tomá-las como maltrantes, retirando todas as ilações que deve retirar para o respectivo exercício da responsabilidade parental. Não esquecendo que somos pais violentos sempre que promovemos, com intencionalidade e sem reparação, o sofrimento dum filho.
Um dos direitos que os pais separados dos filhos pedem é que as escolas os informem das notas e das actividades e dias de festas da escola. As escolas não deviam tomar partido do pai ou da mãe? Em que é que podem mudar os seus procedimentos?
As escolas estão obrigadas a reconhecer que a figura de encarregado de educação é um resquício de Estado Novo na parentalidade. É como se legitimasse o poder paternal dum dos pais à margem de tudo o que diz a Lei. Ora, com as novas tecnologias, informar por mail ambos os pais, seja acerca do que for, não me parece nada de mais.
O LUGAR DOS PAIS-PADRASTOS
Os pais que são padrastos, com um pai biológico ainda vivo e presente, podem, apesar disso, ambicionar ser pais ou serão sempre ‘tios’?
Devem ambicionar ser pais. Também. É claro que começam por ser padrastos, não há outra forma. Sempre que merecem, passam a ser ‘tios’. E se traba-lharem muito para isso, tornam-se um bocadinho pais.
Há padrastos que foram pais de facto da criança que veio no ‘pacote’, mas que após um divórcio não têm sobre aquela criança nenhum direito. Tentar esquecê-la ou manter o contacto?
Têm de manter o contacto. Inequivocamente. E devem ver esse direito salvaguardado. Que não é só um direito seu. É um direito da criança.
Ainda acreditamos que se não há pai biológico então é melhor uma instituição?
Há centenas de crianças que só não são adoptadas porque, às vezes, quem decide é cobarde e não pensa nessas crianças como pensa nos seus filhos
Eduardo Sá
Pedo-psiquiatra
Entrevista de Eduardo Sá ao Destak no dia 16 de Março de 2011

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