sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Mudar de Sexo

Estão em discussão na Assembleia da República uma Proposta de Lei (do Governo) e um Projecto de Lei (do Bloco de Esquerda) que permitem a mudança de registo de sexo desde que diagnosticada a transexualidade e independentemente de alguma mudança anatómica. Estes dois diplomas seguem a orientação das chamadas “leis de identidade de género”, de que é exemplo a Lei espanhola aprovada em 2007.
Numa primeira apreciação, poderá dizer-se que a mudança do registo oficial do sexo de uma pessoa, de modo a corresponder ao seu “sexo social desejado” (na expressão do Projecto do Bloco de Esquerda), nenhuma perturbação causará a outras ou à sociedade em geral. A situação das pessoas transexuais, e o seu sofrimento, não podem deixar de merecer consideração. Mas não me parece que sejam alterações jurídicas como esta que façam desaparecer esse sofrimento (a dissonância entre o sexo genético e o “sexo social desejado” há-de manter-se sempre). E, sobretudo, não me parece que, para isso, se possa aceitar uma subversão do papel do legislador.
Estamos perante uma agenda de afirmação ideológica. Está em causa a afirmação da chamada ideologia do género (gender theory) e a sua tradução no plano legislativo. Parte esta teoria da distinção entre sexo e género. O sexo representa a condição natural e biológica da diferença física entre homem e mulher. O género representa uma construção histórico-cultural. O sexo é um fato empírico, real e objectivo que se nos impõe desde o nascimento. A identidade de género constrói-se através de escolhas psicológicas individuais, expectativas sociais e hábitos culturais, e independentemente dos dados naturais. Para estas teorias, o género assim concebido deve sobrepor-se ao sexo assim concebido. E como o género é uma construção social, este pode ser desconstruído e reconstruído. As gender theories sustentam a irrelevância da diferença sexual na construção da identidade de género, e, por consequência, também a irrelevância dessa diferença na relações interpessoais, nas uniões conjugais e na constituição da família. Daqui surge a equiparação entre uniões heterossexuais e uniões homossexuais. Ao modelo da família heterossexual sucedem-se vários tipos de “família”, tantos quantas as preferências individuais e para além de qualquer “modelo” de referência.
Quando nos diplomas em apreço se alude ao “sexo social desejado” e se opta pela prevalência deste sobre o sexo biológico, a opção é ideológica e não puramente “humanitária”. É a ideologia de género que sustenta essa prevalência. E também se compreende a ligação entre esta questão e as do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não é por acaso que surgem, em Portugal como em Espanha, uma na sequência da outra. É ilusório pensar que se trata apenas do fim de uma discriminação, ou do respeito pelas minorias. É um novo paradigma antropológico, uma verdadeira “revolução cultural” que se pretende impor desde cima, desde as instâncias do poder, e que não surge espontaneamente da sociedade civil e da mentalidade corrente. Pretende-se transformar através da política e do direito essa mentalidade. E o que está em causa não é um aspecto secundário, mas referências culturais fundamentais relativas à relevância da dualidade sexual. Admitir que a Lei sirva propósitos destes, numa pretensa engenharia social, revela tendências mais próprias de um Estado totalitário do que de um Estado respeitador da autonomia da sociedade civil.
Pretende-se, por outro lado, a instrumentalização da Lei ao serviço da prevalência da vontade subjectiva sobre a realidade objectiva. Dir-se-à que a transexualidade não é uma escolha arbitrária, que é também ela uma realidade psicológica que se impõe à própria pessoa. Poderá ser assim nalguma medida. No entanto, a vontade não deixa de ser determinante na definição do “sexo social desejado” a que os diplomas em apreço dão relevância. E os pressupostos da ideologia de género que lhe estão subjacentes, que sobrepõem o desejo a qualquer forma de heteronomia objectiva, deixam aberta a porta a situações de verdadeira arbitrariedade. E também esta é uma pretensão tendencialmente totalitária. O legislador constrói uma sua própria realidade contrária à realidade objectiva. Leis que consagram a ideologia de género desprezam por completo qualquer conceito de natureza ou lei natural. Por isso, derrubam a mais potente barreira à omnipotência do legislador, o «único baluarte válido» (na expressão de Bento XVI) contra o arbítrio deste.


Pedro Vaz Patto
Juiz de Direito

4 comentários:

Anónimo disse...

"Numa primeira apreciação, poderá dizer-se que a mudança do registo oficial do sexo de uma pessoa, de modo a corresponder ao seu “sexo social desejado” (na expressão do Projecto do Bloco de Esquerda), nenhuma perturbação causará a outras ou à sociedade em geral. A situação das pessoas transexuais, e o seu sofrimento, não podem deixar de merecer consideração. Mas não me parece que sejam alterações jurídicas como esta que façam desaparecer esse sofrimento (a dissonância entre o sexo genético e o “sexo social desejado” há-de manter-se sempre). E, sobretudo, não me parece que, para isso, se possa aceitar uma subversão do papel do legislador."

O juiz tende a ver neste projeto um tipo de cavalo de Tróia, que vai abrir portas para outros fins mais radicais. Há enorme exagero nisto. Estamos nos referindo à minorias ínfimas, que vivem um sofrimento psíquico extremos, além de preconceito e rejeição de parte da comunidade em que vivem. Podem existir procedimentos terapêuticos (via psicologia / psicanálise) que venham a reduzir este sofrimento. Porém, outros casos necessitam de intervenção cirúrgica, que a primeira vista parece violenta aos nossos olhos, mas são o início de uma nova vida para estas pessoas. O tom apocalíptico do artigo quer dar a impressão de que o atendimento às necessidades desta minoria estaria a abalar e corromper os alicerces da civilização... No mais demonstra a ignorância e autosuficiência de alguns membros da ciência jurídica em acompanhar as discussões e pesquisas feitas pelas ciências humanas sobre como a sociedade se estrutura. Aliás o texto é tão ideológico quanto alguns representantes dos "estudos de gênero", como se os conceitos de "natureza" e "lei natural" fossem tão transparentes e isentos de reflexão crítica no contexto político e cultural contemporâneo.

Marcelo B

José Maria André disse...

Caro Marcelo B,

Gostei da referência à natureza e à lei natural.

Gostei menos do seu conceito de «reflexão crítica no contexto político e cultural contemporâneo» porque aquilo que faz de cada um de nós um ser humano não depende de nenhum contexto, muito menos político.

Certamente a cultura evolui, mas a natureza humana, isto é, aquilo que faz de nós homens ou mulheres, não muda.

Quando se perde de vista este pormenor, começa-se a distinguir entre seres humanos nascidos há 20 anos, ou recém-nascidos, entre seres humanos do contexto político asiático, ou da União europeia...

A cultura evolui, mas a natureza humana atravessa a História, as idades, as diferenças de raça ou de língua. É comum a todos os seres humanos, sem qualquer distinção. Por isso todos somos iguais em dignidade e direitos.

Também gostaria de chamar a atenção do Marcelo B para o tom do seu comentário. Talvez não tenha reparado, mas o Dr. Pedro Vaz Patto defendeu os seus pontos de vista sem insultar ninguém nem cair em qualquer ataque pessoal. Temos de aprender com ele a respeitar os outros.

Saudações!

Anónimo disse...

Olá!

A concepção de natureza humana é uma questão em aberto. Goste-se ou não. É saudável discutí-la. Quem assim procede não está necessariamente pregando niilismo ou relativismo absolutos, mas ampliando o conhecimento sobre a condição humana e na maneira como solucionar certos problemas sociais. Existem elementos da herança genética que estruturam o comportamento do indivíduo antes do nascimento, isto seria natureza humana? Pelo menos uma definição.
Há também o papel da cultura e da experiência social que alteram essa herança, até certo ponto.
Você está entrando na questão do direito natural. Mas mesmo defensores contemporâneos desta doutrina admitem certa plasticidade do comportamento humano, certa influência cultural. No campo das ciências humanas e da natureza há a tendência a postular certa interação entre fatores "naturais" e culturais, afastando-se do determinismo genético absoluto e do culturalismo sem nenhuma ligação com a biologia. Portanto o conceito de natureza humana não é intocável.
Mesmo no âmbito religioso, há discussões teológicas muito profundas...
De fato o Dr. Patto foi educadíssimo. Não me recordo de ter usado de grosseria no meu texto. Apenas fiz referência a ignorância (no sentido de desconhecimento) do operador do direito em levar consideração elementos de outras ciências que poderiam ser úteis no estudo de certos temas, como se este recurso fosse macular a nobre arte do Direito.
Convém lembrar ao longo da história, a defesa da inferioridade da mulher, da escravidão, exploração dos pobres com base em argumentos fundados da "natureza humana imutável".

Marcelo B

José Maria André disse...

Marcelo B,

Obrigado pela sua resposta. Ainda bem que o tema da natureza humana o interessa. Este blogue é justamente para defender a dignidade da pessoa humana: bem-vindo!

Parece-me que o seu comentário se refere mais à cultura do que à natureza humana. Compreendi bem?

Concordo que a cultura (a língua, as expressões artísticas, as tradições, as formas de organização social...) vai assumindo formas diferentes, recriada por cada geração e por cada sociedade. Quanto mais original a criação cultural, melhor. Precisamos dessa riqueza!

Em contrapartida, a natureza humana não foi inventada por nós. Se a expressão «natureza humana» tem algum significado, ela designa algo que constatamos, um dado de facto anterior a qualquer actuação nossa.

Se a nossa natureza mudasse deixaríamos de ser seres humanos.

Claro que é sempre possível investigar mais sobre todos os assuntos, mas conhecer melhor a natureza humana não é inventar uma natureza nova.

Um dos méritos do artigo do Dr. Vaz Patto e de muitos textos que encontra neste blogue é ajudarem-nos a conhecer melhor e a respeitar mais a nossa natureza comum. Cada pessoa humana merece todo o respeito porque, independentemente da diversidade das culturas, possuímos TODOS a mesma natureza!

(Nota: deve ter havido um equívoco, ou uma gralha que trocou a ordem das palavras do seu último parágrafo. Os agravos às mulheres, aos escravos e aos pobres traduzem a concepção de que há várias naturezas humanas. O respeito pelas mulheres e a abolição da escravatura correspondem ao reconhecimento de que a natureza humana é A MESMA para todos nós).