sábado, 15 de março de 2014

As crianças belgas também são nossas

 
 
Esta lei é iníqua e merece a rejeição por parte de toda a pessoa de boa vontade.
O projecto de lei recentemente aprovado no Parlamento belga provocou generalizadas reacções de rejeição e crítica. Todavia, também encontrou alguém que o defendesse, como a deputada socialista que descansou os opositores, pois, como declarou, ninguém deve temer esta lei, já que não torna obrigatória a prática de eutanásia em crianças doentes ou deficientes. Só faltava isso e teríamos regressado ao programa nazi de supressão da "vida sem valia para ser vivida"!
É necessário corrigir muitas das afirmações erradas que têm sido feitas a este propósito, mesmo por parte dos proponentes da lei, cujos erros poderão vir a ter consequências trágicas.
Na realidade, não se trata de "eutanásia infantil" ou "alargada a crianças", pela simples razão de a eutanásia ser, por definição, a indução da morte a pedido daquele que vai ser morto. Ora, ao permitir que seja dada a morte a crianças sem a faculdade de "discernimento" para a pedir (que seriam, em princípio, as de idade inferior a 12 anos, incluindo os bebés prematuros), o projecto de lei aprovado estabelece que serão os pais (ou representantes legais) e a equipa médica quem tomará a decisão fatal. De facto, o Parlamento belga aprovou a legalização do infanticídio ou homicídio a pedido não do próprio sujeito, mas de terceiros.
Claro é também que o facto de a própria criança dotada de "faculdade de discernimento" – conceito cujo conteúdo será determinado de forma puramente subjectiva – poder solicitar a morte não pode ser valorizado: se nem a lei nem o senso comum reconhecem maturidade a pessoas de idade inferior a 16 (ou 14, nalguns países), como se poderá argumentar que, em questão tão fundamental, o jovem ser terá experiência, conhecimento e ponderação para pedir que o matem? Serão sempre os adultos que o rodeiam quem tomará a iniciativa, sugerindo-a, propondo-a ou pressionando nesse sentido. O texto que acompanha a proposta de lei, paradoxalmente, admite que a morte da criança é importante para apaziguar o sofrimento da família, isto é, que pode funcionar como terapia para terceiros. Ora, os pais não são donos, apenas curadores e procuradores dos seus filhos; reconhecer aos pais o poder de entregar à morte os seus filhos é regredir, pelo menos, até aos primórdios do direito romano.
A premissa de que se poderá evitar sofrimento insuportável e intratável da criança, por exemplo em estado terminal de doença oncológica, é fraudulenta, pois a arte médica tem processos disponíveis para tratar toda e qualquer situação dolorosa; eventuais erros médicos (por obstinação ou por insuficiência terapêutica) têm de ser prevenidos e condenados.
Do ponto de vista ético, é inaceitável praticar qualquer intervenção sem consentimento expresso, esclarecido e livre do sujeito, vulgarmente designado por "consentimento informado". Nas crianças, o consentimento é prestado pelos pais ou por outros representantes legais, mas não será considerado como válido se estiver em oposição ao superior interesse da criança. Poderá entender-se que pedir a morte para uma criança e matá-la serve o seu superior interesse? Note-se ainda que, no caso vertente, não se pode falar sequer de consentimento, o que implicaria uma proposta ou pedido prévios: os pais não consentem num tratamento ou numa intervenção nos filhos, apenas solicitam que se lhes dê a morte.
Estas são as razões por que  consideramos esta proposta de lei como:
 – eticamente reprovável, por não existir consentimento informado e se ofender um direito humano primacial, que é o direito à vida;
 – moralmente repugnante, por reconhecer aos pais um poder de disposição da vida dos filhos;
 – juridicamente aberrante, por prescindir de garantias e violar direitos dos mais frágeis.
Por isso, no caso de vir a entrar em vigor, esta lei será um atentado contra a humanidade e uma vergonha para o país que a aprovou. E não se diga que devemos respeitar a soberania de um país que não é o nosso e abstermo-nos de juízos de valor sobre textos legais estrangeiros: quando se trata de direitos fundamentais, não há fronteiras, nem santuários políticos. As crianças belgas são também nossas.
Esta lei é iníqua e merece a rejeição por parte de toda a pessoa de boa vontade.
Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa
Professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
 
Público,13/03/2014 

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