Primeiro, alguns factos incontornáveis e indesmentíveis: há muitos
doentes crónicos e incuráveis, em fase avançada da doença, que são
maltratados pelo sistema nacional de saúde. Uns porque sofrem em casa,
sem assistência, outros porque não têm dinheiro para medicamentos e
tratamentos, outros ainda porque desesperam em salas de espera e
enfermarias dos hospitais por terem sido dados como ‘casos perdidos’.
Pessoas em quem ninguém investe.
Muitos sofrem sozinhos, outros acompanhados por familiares e amigos
tantas vezes impotentes perante o seu sofrimento. É difícil estar à
cabeceira de quem sofre. É terrível não ter o poder de curar. E deve ser
brutal saber que os profissionais de saúde desistiram de nós. A frase
“não há nada a fazer” é assassina. Quem a ouve morre logo ali. Devia ser
proibida com urgência. E devia haver multas pesadas, pesadíssimas, para
quem se atrevesse a proferi-la em contexto clínico. Dizer a um doente e
à sua família que não há nada a fazer, é matar toda e qualquer
esperança. Não é preciso ser especialista em coisa nenhuma para saber
que há sempre muito a fazer por quem está vivo!
A finalidade da Medicina não é apenas curar doentes e doenças. Tão
pouco se destina a cuidar especialmente de doenças agudas. A Medicina
também serve para prevenir e controlar sintomas, em especial as dores
dos doentes crónicos, progressivos e incuráveis. Existem tratamentos
apropriados para este tipo de doentes, que sofrem de mil maneiras, sejam
elas físicas, morais ou emocionais. É difícil aliviar muitos
sofrimentos a muitos doentes, mas não é impossível minimizar as suas
dores. Os médicos sabem isso. E os responsáveis pelo Sistema Nacional de
Saúde também. Mas deviam saber mais: não existem para fazer apenas o
que é fácil e tangível. Só quem passa pela experiência da dor grave e
aguda, da doença crónica, progressiva e incurável, sabe o que sentem os
que experimentam esta realidade. E sabem, inclusivamente, que muitos
doentes se sentem responsáveis, quase como que culpados pelo que lhes
está a acontecer. Culpados por não se curarem numa cultura contemporânea
de medicina triunfalista, essencialmente apostada na cura. Culpados por
serem ‘maus doentes’, por não terem saúde, em sistemas estrategicamente
orientados para abordagens curativas.
Neste enquadramento de sofrimentos em cúmulo, de dores em excesso,
parece a muitos que a única saída é a eutanásia ou o suicídio assistido.
Percebo que pareça e respeito quem assim pensa, mas gostava de
acrescentar ao debate nacional sobre a eutanásia a minha perspectiva,
partilhando aqui a minha experiência de 3 anos à cabeceira de doentes
terminais, numa unidade de Cuidados Paliativos, mais um par de anos
vividos à cabeceira de três doentes adolescentes que me eram muito
queridos. Dois deles morreram, mas uma sobreviveu. Foram anos duros,
muito duros, mas ensinaram-me muito. E fizeram de mim uma paliativista
radical. Explico porquê.
Em três anos de voluntariado de cabeceira com toda a espécie de
doentes, de todas as idades, estive muito próxima de pessoas mais e
menos desesperadas. Conheci jovens revoltados que entraram na unidade a
pedir a eutanásia mas desistiram quando começaram a sentir os benefícios
dos cuidados paliativos; estive de mãos dadas com mães suspensas da
última respiração dos seus filhos; abracei raparigas novas que morreram
antes de chegar a casar; partilhei silêncios demorados com mulheres que
se despediam dos maridos e dos filhos pequenos; segurei no colo essas
mesmas crianças que diariamente visitavam a mãe sem compreenderem bem o
que as esperava; li livros em voz alta para avós de muitos netos;
conversei longamente com engenheiros e professoras universitárias,
músicos e matemáticos, filósofos e artistas que morreram cedo demais.
Com uns aprendi o valor da aceitação da morte e a pacificação em vida,
com outros aprendi o respeito pelas suas zangas e revoltas. Com todos
percebi a extensão do sofrimento terminal e a importância de terem ou
não terem cuidados paliativos. E é aqui que tudo muda. E é este o debate
essencial que devemos cultivar e alimentar antes de avançarmos para
votações e novas legislações sobre o mítico ‘direito a morrer com
dignidade’.
Felizmente os paliativistas cuidam do direito a viver com dignidade
até ao fim. Sabem que uma equipa pluridisciplinar associada a um
cocktail de químicos sabiamente doseado, minimiza os sofrimentos físicos
e atenua os sofrimentos morais e emocionais. Até eu sei isso, e nunca
estudei Medicina. Sei porque vi, porque conheci dezenas de pessoas que
pensaram que a única saída que tinham era a morte assistida, a
eutanásia, e quando começaram a beneficiar de cuidados paliativos
abandonaram a ideia. Naturalmente, sem pressões, note-se. E viveram com
dignidade até ao fim, sem dores insuportáveis, sem sentirem necessidade
de pedir a alguém para os matar.
Não posso nem quero citar nomes e muito menos contar as histórias de
cada um dos doentes que entraram no hospital (ou chamaram os médicos a
casa) a pedir a eutanásia. Uns gritavam, outros suplicavam, outros
impunham a sua derradeira vontade num silêncio devastador, mas todos
queriam acima de tudo ver-se livres do sofrimento. Não queriam viver
porque não conseguiam sofrer mais. As famílias sentiam o mesmo, e a
morte assistida parecia-lhes a única saída. Não era, felizmente. Graças
aos cuidados paliativos, muitos deles tiveram oportunidade de voltar a
viajar, de realizar sonhos, de voltar a casa, de viver sem dores e de
recuperar a dignidade tantas vezes perdida quando nos reduzem à
expressão mínima. Quando alguém deixa de ter nome e passa a ser apenas
mais um doente, não dói a penas o corpo. Também dói a alma.
Vivemos num país onde os cuidados específicos ao nascer estão
assegurados para todos, independentemente da sua classe social ou
geografia de origem, mas não temos o mesmo privilégio ao morrer. Porquê?
Porque é que antes de legalizar a eutanásia, não asseguramos esses
mesmos cuidados? Porque é que não criamos alternativas à morte assistida
minimizando ou até eliminando o sofrimento físico? Se sabemos que isso é
possível e se faz em cada vez mais unidades hospitalares, serviços
ambulatórios e equipas que vão ao domicílio dos doentes, porque não
começar a discussão política por aqui? Porque não exigir primeiro que
todos passemos a ter direito a cuidados paliativos que, ainda por cima,
não se destinam apenas a doentes terminais, mas abrangem todos os
doentes crónicos, com doença progressiva e incurável?!
Os cuidados paliativos também são preventivos. Previnem sintomas e
sofrimentos. Fazem com que as dores não cheguem a ser insuportáveis. E
com que as pessoas não queiram desistir de viver. Tal como as doses de
antibiótico têm que ser avaliadas caso a caso, também a casuística se
aplica nos cuidados paliativos. Não há receitas padrão. Cada pessoa é
uma pessoa. Os cuidados paliativos são mundialmente reconhecidos como
uma prática médica de excelência e revelam sempre uma forma de medicina
humanizada. E todos sabemos como uma medicina des-humanizada pode levar a
pedidos dramáticos e definitivos para morrer, de forma a acabar com o
sofrimento…
Fazer a diferença à cabeceira de um doente não passa por dar mais
mimos ou ter mais cuidados afectivos. Também passa por isso, certamente,
mas não se tratam doentes graves só com mimos. Desenganem-se os que
acham que os paliativistas são médicos mais queridos e dedicados aos
seus doentes porque apostam mais na ternura e proximidade do que na
ciência, pois não é possível tratar derrames, vómitos, dispneias,
convulsões e outros sintomas que tais com mimos, a dar a mão ou a fazer
festinhas na testa. Os cuidados paliativos são uma especialidade clínica
avançada, da linha da frente, que exige equipas multidisciplinares com
capacidade para fazerem uma intervenção na dor e no sofrimento dos
doentes.
Não abandonar um doente que não se pode curar é vital. Sei de um
cirurgião português, contemporâneo, que durante anos a fio operou a
desoras, quase clandestinamente, doentes que tinham sido dados por
perdidos. Esperava pelas madrugadas ou contava com as horas tardias em
que os blocos operatórios estavam livres e com todas as condições de
assepcia asseguradas, para operar homens e mulheres com mais de 80 anos
que estavam desfigurados por terem um cancro na zona da cabeça e
pescoço. Eram doentes de quem os próprios familiares desistiam ou fugiam
por não saberem como lidar com a fealdade, com os cheiros e toda a
escatologia própria desta doença demolidora. Este médico tinha uma
equipa que colaborava com ele e, juntos, fizeram centenas de cirurgias a
‘velhos’ que só esperavam a morte (e pediam a morte!). Alguns destes
doentes viveram ainda mais de uma década e eu própria li as cartas que
escreveram a agradecer terem sido operados. E também conheci filhos
destes ‘velhos’ que foram ter com o médico a dizer que voltaram a
conseguir estar com os seus pais.
Podem dizer que o exemplo deste médico não tem nada a ver com
paliativos e realmente não tem, mas tem a ver com a eutanásia na medida
em que revela a humanidade dos médicos que sabem que há sempre alguma
coisa a fazer por quem está vivo. Não se trata de encarniçamento médico,
nem de obstinação terapêutica, note-se, pois nunca se tratou de obrigar
os doentes a fazer mais e mais tratamentos dolorosos, mas de minimizar
sofrimentos e devolver dignidade. Nisso, este médico agiu como agem os
que mesmo sabendo que nada podem fazer para curar, podem tentar tudo
para dar qualidade de vida até ao último dia.
A discussão sobre a eutanásia promete ser acesa e cheia de
controvérsia, mas gostava que não passasse ao lado de uma realidade
ainda mais urgente e fracturante na nossa sociedade: se todos temos
cuidados específicos ao nascer, também todos temos que ter cuidados
específicos ao morrer! Os cuidados palitaivos não podem ser só para uma
elite ou um conjunto de eleitos. Têm que ser para todos. Só quando
tivermos esta realidade assegurada teremos verdadeira liberdade de
escolha e aí sim, será mais legítimo falar de eutanásia e suicídio
assistido. Antes disso, perdoem-me os que pensam diferente, mas a minha
convicção profunda (e faz de mim uma paliativista radical) é que a
maioria das pessoas que pede a eutanásia, não a pediria se tivesse a
certeza de que deixaria de sofrer. Se tivesse garantias de que poderia
libertar-se do sofrimento, sem ter que acabar com a vida.
Laurinda Alves
Observador